“In Extremis” (49) …e que tudo mais vá para o inferno!

 

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(foto: Magda Ehlers / Pexels)

Tempos houve, “risonhos e francos”, como a escola do poeta.  Devagarinho, devagarinho, foram atropelados. Lembro-me de os primeiros sinais de mudança, o meu pai tê-los percebido numa tarde em que me perguntou: “Filho, você notou que as pessoas não mais assobiam nas ruas?” Pois, nas ruas, em seus caminhares calmosos, as pessoas assobiavam. Um assobio aqui, outro acolá – e eis que se formava uma sinfonia cotidiana.

Havia – especialmente entre os jovens – um desafio musical. Perguntava-se, um a outro: “Que música você tem agora na cabeça?” Pois as pessoas tinham, em qualquer momento, música na cabeça. E, sem que o percebam, acho que ainda têm. A música é parte essencial da vida, do mundo: a brisa canta baixinho, o temporal é o grande tenor ao lado de trovões e raios que estalam. Passarinhos, grilos, cigarras, cantam. E o homem também. Antes, ele cantava livremente. Agora, no silêncio de si mesmo. Em sua angústia, em seu desespero. Um quase “réquiem”.

Pensei estivesse, minha alma, imune a grandes angústias, tantas já as conhecera ao longo da existência. Foi pretensão, excesso de confiança. Mesmo que nada houvesse mudado em minha realidade digamos que ambiental – o mesmo isolamento, as mesmas condições de serenidade – a vida espiritual fora-me atingida. Machucada. O vírus, a dor planetária, o absurdo da situação brasileira, essa mediocridade assustadora – tudo me contaminara.     Noites inquietas, sono interrompido e pesado, ansiedade, a incerteza diante do que não compreendemos, a dúvida entre saber dos acontecimentos ou evitá-los, na louca vontade de, evitando-os, acreditar não mais existissem.

Então, numa dessas manhãs, acordei com a alma pesada, o sabor da tristeza, a vontade de continuar dormindo para não saber de todo esse ataque virótico, do corona-vírus e de Brasília. Como faço todas as manhãs, abri as janelas do quarto e, então, o impacto, a reprovação à minha tristeza: o céu inteiramente límpido, uma explosão de flores e de cores nas árvores, a passarinhada voando e garrulando como se dona de todos os espaços. Perdi o fôlego. E, sem fôlego, voltou-me a consciência.

A música, então, “entrou-me na cabeça”. Música ao mesmo tempo raivosa e alvissareira, música que brotou da alma então ferida de Roberto Carlos, a música que foi como que um lema, uma decisão, uma busca de minha geração: “ … e que tudo o mais vá para o inferno!” Para não gritar – a sensação do despertar de um sentimento de “dor do mundo, dor de mim” – inspirei todo o ar que me suportaram os pulmões. E expirei-o como se lançasse para fora aqueles dejetos d´alma, uma repulsão, um vômito espiritual. E deixei que garganta, voz, lábios verbalizassem a decisão já tão antiga: “… e que tudo o mais vá para o inferno”.

À chegada do moço que me ajuda na jardinagem, convidei-o: “Vamos continuar o trabalho e mandar tudo o mais para o inferno?” Ele topou. E nem precisei falar-lhe para qual inferno verdadeiro mandaríamos, a partir daquele momento, todas as coisas. Pois já sabemos: o inferno das chamas horríveis e dos diabos horrendos, esse não existe, apesar de tão explorado para amedrontar ingênuos. O inferno verdadeiro é aquele de Sartre – “o inferno são os outros” – mais o outro que cada um de nós cria dentro de si mesmo. Inferno em Brasília, inferno do corona vírus, inferno de bolsonaros e de tantos políticos, inferno de mercantilistas, de exploradores de desgraças, tantos infernos.

Ao fim, percebo não haver porque “mandar para o inferno”. Pois já caímos nele. O desafio está em sair dele.

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