“In Extremis” (5) – “Relatos de um peregrino russo”

Pregrinação

Peregrinação. (imagem: Pixabai)

Na segunda metade do século 19, um pequenino livro – cerca de 80 páginas –  encantou o mundo. De autor desconhecido, “Relatos de um peregrino russo” comoveu mentes e corações com a sua simplicidade quase ingênua. Mas com lições de vida que inspiraram pessoas humildes e pensadores como Dostoievsky, Tolstoi. No século 20, o livrinho chegou à Europa, causando uma onda de espiritualidade serena, sem intelectualismo, sem porquês. E, a partir da França, conquistou o mundo.

A simplicidade é enternecedora, narrando a busca angustiada de um pobre peregrino para entender a frase evangélica que o inquietava: “orai sem cessar”. Como seria, isso, possível com todos os afazeres do ser humano, responsabilidades, compromissos, a luta pela subsistência? Quem poderia explicar-lhe? Inquieto, lá se pôs o homem a caminho, procurando um mestre que o orientasse, ouvindo sermões, frequentando igrejas, recolhendo-se em mosteiros, recorrendo a velhos sábios e santos. E, por fim, encontrou a resposta: na oração do coração, na Filocalia, que é o amor pela beleza.

O admirável é que todo o tesouro espiritual estava em uma simples frase: “Kyrie Eleison”, “Senhor, tende piedade de mim.” O peregrino compreendera que a palavra piedade não tinha o sentido banal, quase pejorativo de “ter pena, ter dó.” Os antigos sabiam que “pedir piedade” era pedir o “dom do amor”. E que “orai sem cessar” era, ao final, uma oração do coração, de agradecimento pela beleza da vida, não o lamento pelas amarguras. O peregrino começou a viver aquilo que está na alma humana desde o princípio dos tempos: sacralizar a terra, reverenciar o divino nos fenômenos naturais, na água, no fogo, no sol, na lua, no dia, nas estações do ano, na tempestade, reconhecendo-se parte do universo, num todo indivisível.

O peregrino russo descobriu que, com os “olhos do coração”, começara a “orar sem cessar”: “Kyrie Eleison” pelos amigos encontrados, pelas flores do campo, pelo gado pastando na planície, pelos flocos de neve que caíam como fiapos de algodão, pela sensibilidade do coração diante do pobre esmoler, diante do enfermo. “Senhor, tende piedade” ou seja: “não olhe para a minha incapacidade de amar, mas me dê a sabedoria do coração, que eu alcance a arte de viver.” Ele entendera ser, a vida, arte a ser elaborada pacientemente, com perseverança, o pintor traçando suas linhas e cores cuidadosamente numa tela em branco.

Senti-me, também eu, tocado por esse livrinho aparentemente ingênuo. É óbvio transcorrer no contexto da fé cristã, ortodoxa russa. No entanto, há tanta ternura, humanidade, confissões de fraqueza e de finitude, tanta riqueza de descobertas simples, que, em meu entender, é uma enciclopédia da sabedoria de viver. Quando se abrem os olhos do coração, acolhe-se a doçura da universalidade dele. Em mim, deixou marcas felizmente indeléveis.

Esse livrinho leva-me, ainda hoje, a transpor tempo e espaço e presenciar os nossos dias. Seríamos heróis ou vítimas, sobrevivendo ao massacre materialista? Perdemos a noção do essencial, optando pelo absolutamente secundário? Passeamos por um jardim florido e não enxergamos as flores, mesmo tendo-as visto. Não vemos a espetacular Lua Cheia que iluminou todas as coisas. Nem as estrelas que parecem dançar ao redor dela.  Não damos importância ao humano caído nas ruas: ele não tem preço e valor no mercado. O enfermo é um estorvo. Coexistimos com vizinhos e somos estranhos uns aos outros.

Transformamos o Jardim em Mercado. “Kyrie Eleison.”

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