“In Extremis” (52) – S. Exas., o forno e o fogão

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(Foto: Jaime Spaniol / Unsplash)

De quando em vez, vejo-me tomado de uma vontade danada de ser politeísta, de adorar muitos deuses. Em especial, os do Panteão grego. Parecem-me irresistíveis em toda aquela confusão divino-humana. Ter um deus praticamente para cada momento ou circunstância da vida, isso deve criar uma maior intimidade entre criatura e criação. Sei lá. A minha realidade pessoal, porém, diz-me de uma presença marcante e fundamental da mitologia grega já na minha infância. Começando por Monteiro Lobato. Quanta fantasia, quanto sonhar, quantos demônios plenamente controláveis!

Em meus delírios – que sinto se tornarem mais intensos na velhice – tenho visto, nestes dias tormentosos, a presença de Prometeu, o deus benfeitor da humanidade. Digo-o sem brincadeira. Digo-o a sério. Nestes dias, Prometeu repete o que nos fez ao início dos tempos, quando trouxe o fogo aos homens, roubando-o ao colérico Zeus. E, com o fogo, tudo mudou. A noite deixou de ser tão escura. O inverno fez-se menos ameaçador. O cru pôde tornar-se assado. Ressurgiram a luz, o calor, o aconchego. E, talvez, para o homem não se sentir tão poderoso, também apareceram a destruição, os incêndios. Pois, viver tem lá o seu preço.

Quando o homem, dentro de sua choupana, inventou a lareira – o fogo para aquecer e iluminar – estava criado o lar. A lareira fez o lar. E não mais existiu lar sem lareira, o fogo, o fogão. Mas… A civilização decidiu reinventar o mundo. Pois, o homem – feito à imagem e semelhança de seu Criador – decidiu imitar o próprio Deus. E inventou a eletricidade, descobriu maravilhas – e o lar, a pouco e pouco, ficou sem a lareira original. Perdeu-se o fogo, o fogo inspirador, o fogo da alma, o fogo do coração. Mas o fogo não nos abandonou.

Esses meses tão trágicos permitiram-nos o retorno de Prometeu – quem ainda não percebeu? Pois o fogo retornou aos lares. Homem e mulher redescobriram a arte, a bênção, a alegria de cozinhar, a bênção da arte culinária, o quase milagre de o cru tornar-se cozido. Acenderam-se, novamente, os fogões. Os fornos acolheram tortas, delícias feitas pelas mãos das mães e dos pais. As casas inundaram-se do cheiro, do perfume da comida feita em casa. De manhã, o odor revigorante do café. À hora do almoço, a fragrância do feijão nas panelas, do alho e da cebola, o sabor da pimenta e do sal. Eis que, de novo, o fogo criou o lar e as famílias voltaram a viver a aventura da convivência, o desafio de coexistir amorosamente. Apesar das dificuldades.

Há 500 mil anos, o fogo permitiu que o hominídeo, gradativamente, se tornasse humano. E, em poucas décadas – a partir do final do século XX – o homem vem tentando abolir a cozinha, o templo do fogo. Se não percebeu antes, talvez esteja percebendo agora, nessa crise terrível mas reveladora: não há lar, não há família sem cozinha. Não se trata apenas de comer, de alimentar-se. Trata-se da comensalidade, do comer juntos, desse encontro vital que se tornou o ritual capaz de unir até mesmo nações. A cozinha – reinado do fogo – é o ofertório que antecipa a comunhão no altar eucarístico das famílias: a mesa das refeições.

Por mais lamentemos tragédias, perdas, sofrimentos, não há como negar o homem aprenda com a dor. Todas as hecatombes que abalaram o mundo levaram-nos a transformações que, quase sempre, indicaram novos caminhos. E melhores. Porque abertos, sem empecilhos e equívocos cometidos anteriormente.

Acreditemos seja, esse, o novo momento. E bendigamos o retorno de Suas Excelências, o forno e o fogão. Que fiquem para sempre.

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