“In Extremis” (60) – A voz dos passarinhos

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(imagem de Evgeni Tcherkasski, por Pixabay)

Igualmente a muitas pessoas, sempre me indaguei – desde a adolescência – a respeito das conversas de Deus com Adão. Foram diversas, antes da malcriação feita pelo casal. Uma das perguntas intrigava-me mais: “Onde estás, Adão?” Ora, se era Deus, como é que não sabia?

A maior curiosidade, no entanto, era a de saber em qual língua Deus falava com Adão, qual era a voz deles. Seria, talvez, através do pensamento, por telepatia? Havia uma voz? Foi, então, numa de minhas leituras, que deparei com a afirmação de pensadores esotéricos, reveladora do mistério:  a voz de Deus era a dos passarinhos. Encantei-me e, ao mesmo tempo, assustei-me com o retorno do meu horror de infância, meu pesadelo eterno, a culpa que carrego por eu mesmo não me haver perdoado: matei um passarinho. Mesmo que acidentalmente, a verdade é que matei um passarinho! E sinto, ainda hoje, não me ter perdoado a mim mesmo.

Éramos um quase inseparável grupo de crianças, lá pelos nossos oito, nove anos. Guto, o Gordo; Zezo, o Pretinho; Cidinha, a Louca; e eu, o Turquinho. O mais esperto de todos era o Zezo, filho da lavadeira do Hotel Lago, no lugar onde, hoje, está o Poupa Tempo. Todas as casas tinham quintais, mesmo que pequenos. E eles eram, na verdade, o paraíso das crianças. Sentíamo-nos donos, proprietários deles. Como, também, donos das ruas, dos quarteirões ao longo dos quais brincávamos descalços, meninos de peitos nus. Foi, então, que Zezo apareceu com o estilingue, feito por ele mesmo, uma pequena forquilha de árvore.

O estilingue, por quê? Guto foi o primeiro a querer brincar com ele; Cidinha ficou à distância, essa misteriosa intuição feminina pela preservação da vida. Fiquei ansioso, lembro-me bem. Apanhei uma pedrinha, mirei num tronco de árvore, acertei num dos galhos. E, sem tê-lo desejado, atingi um passarinho. Bem no peitinho dele. Quase enlouqueci de horror.

Gritei por minha mãe, agarrei-me em suas pernas e o depois foi de uma pungência que ainda me acompanha. Pois dona Amélia – ah! dona Amélia, dona Amélia – recolheu minha vítima com as mãos, sussurrou coisas e levou o bichinho para nossa casa. Procurou uma caixa de sapato e fez, dela, a urna do pobrezinho. Em seguida, pediu-me que a ajudasse a fazer uma cova no canteiro. Ajudei, chorando. E ela enterrou o coitadinho, cobrindo-o de terra. Para completar, fez uma pequenina cruz com gravetos e colocou-a no túmulo do pobrezinho por mim assassinado. “Pronto, filho. Agora, ele está com Deus…”

Esse crime tem-me acompanhado pela vida. Freud ou Jung haveriam de bem explicá-lo, mas eu continuo, de quando em quando, a sonhar com meu delito. Ninguém, realmente, passa impune pela vida, eis que me convenço disso. O fato é que – sei lá se por remorso, se por admiração – tenho, por pássaros, como que uma reverência especial. Sinto que – fosse, eu, um dos “homo habilis”, saindo das cavernas – acreditaria, vendo pássaros, fossem, eles, pequeninos deuses. Voar, como é possível? Muitos deuses: Sol, Lua, Terra, pássaros, mulher grávida – isso é lindo! Continuo encantando-me com isso.

E por qual razão – em tempos de tanta dor e, até mesmo, de desespero – lá estou, eu, dizendo de passarinhos? Exatamente, por causa de dor, de desespero, de angústia. Pois eu me lembrei de que Deus conversa com a voz dos pássaros, das aves. Por os antigos áugures, oragos, videntes buscarem respostas com as aves. Aves avisam, áugures auguram.

Entender a voz dos passarinhos, pois, é entender a voz de Deus. Fico à escuta. Não para que Deus resolva. Mas para inspirar-me a agir, a suportar, a aprender. O quê está, Ele, avisando aos passarinhos?

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