In Extremis (68) – Fome, na casa de Luiz de Queiroz?

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(imagem de JL G, por Pixabay)

Não me lembro – em algum período da vida e apesar da pobreza familiar – de ter conhecido a fome. No entanto, marcou-me a pungente nitidez de imagens de judeus martirizados pelo nazismo. Relatos de Dachau, Auschwitz, Treblinka, Sobibor arderam-me na alma infantil como brasas na carne. Fome, para mim, passou a ser, também, o nome do horror, da injustiça absoluta, da vergonha de qualquer povo.

Vi, nos 1980, o desesperador fruto da fome no centro de Fortaleza. Era uma quadra inteira, com crianças, moças, mulheres idosas umas nas outras encostadas à espera de quem as quisesse para a prostituição. Em Salvador, em pleno centro histórico, vi meninas prostituindo-se – encurraladas numa viela – ao preço do que seria, hoje, apenas um real. A fome mata qualquer resquício de dignidade da pessoa humana. E torna perversa a população privilegiada que a permite.

O alimento é sagrado, mesmo por ser fundamental para a própria sacralidade do ser humano. Vivo, ainda, aquilo que, da família, aprendi na infância. Não se jogava sequer um pedacinho de pão. Se fosse rejeitá-lo, havia, antes, que o beijar. Não se enchiam muito os pratos de comida, evitando houvesse sobras. Estão, ainda, em mim, os ensinamentos de meu pai: “Ponha pouca comida no prato e repita quantas vezes quiser. Mas não deixe sobrar. Lembre-se de sempre haver quem tem fome.”

Fome, fome, fome… É um bordão moral que ainda me acompanha no dia a dia. Avalio-o com um doído complexo de culpa, sentindo-me cúmplice da tragédia.  Nenhuma filosofia, nenhum senso de justiça, nenhuma explicação – nem mesmo a de que “ganhar o pão com o suor do rosto” – me convence. Até admito – embora inconformadamente – aquele amargo “pobres sempre existirão”. Mas é preciso, por serem pobres, que morram de fome?

O vírus trouxe a fome de volta e não há artifício político, econômico, social que o negue. Já chegou com o desemprego, com a interrupção do trabalho, com a evidente desordem na economia mundial. Uma expressão mentirosa é tóxica: “novo normal”. E muitos brasileiros – estúpida ou inadvertidamente – tem-na repetido como refrão. E esse miserável “novo normal” nada mais é do que o projeto tirânico que Mr. Trump impôs, nos Estados Unidos, para expulsar imigrantes ilegais. Como nos esquecer dos milhares de crianças separadas dos pais? Era o “novo normal”. Que foi anulado.

À nossa Piracicaba, a fome também está chegando. Por enquanto, silenciosa, enganadora, maquiavélica cúmplice dos chamados negacionistas e dos que se agarram a esse “novo normal”, máscara que oculta a face verdadeira do materialismo. Mas Piracicaba não pode ser derrotada. Não se trata de dever ou de querer impedir a fome. Trata-se de não aceitá-la, de não admiti-la a menos que manchemos a e renunciemos à nossa história. Pois somos, sim, uma cidade privilegiada. E abençoada. Não podemos, pois, trair as gerações que nos antecederam.

Esta nossa terra abriga a ESALQ! Foi aqui que nasceu, que vive o grande sonho de Luiz de Queiroz, sua grande obra. O grande homem sonhou com exterminar com a fome do Brasil. Ou, também, do mundo? Piracicaba, através da ESALQ, é berço dessa epopeia e tem que ser guardiã dela. Pois será de uma ironia atroz se, na casa de Luiz de Queiroz, houver alguém que sofra e definhe pela fome. Por que nossos homens públicos não criam, com a ESALQ, um grande plano municipal de produção alimentar solidária, participativa, comunitária? A casa de Luiz de Queiroz tem que realizar aquilo pelo que ele viveu: “Atrela o teu arado a uma estrela”.

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