“In Extremis” (7) – Tempos do não-mais e do ainda-não

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“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. ” (imagem: Pexels)

Embora vivendo em recolhimento, é-me impossível o alheamento da vida e do mundo. Não o consigo, por mais sinta e saiba ter-me chegado o tempo do silêncio. Um mínimo que se alcance da ambicionada sabedoria de viver impõe, após a vida ativa, a busca da contemplação. Seria um fiapo inicial, simples fiapo, da “douta ignorância”, a consciência dos limites do saber, das possibilidades do fazer.

As águas do mar apenas se apascentam nas praias – como que descansando – após terem vivido ondas violentas, borrascas, verdadeiras lutas de deuses conflitantes ao largo do oceano. Vivemos em ondas, quase sempre surpreendentes.  E uma onda provoca outra, como se esta fosse, realmente, a causa daquela. É inevitável: uma causa provoca um efeito que, por sua vez, se torna causa de um outro efeito. “… e la nave vá”.

Admito estar sentindo-me mal, muito mal. Triste comigo mesmo. Preparei, cuidadosa e arduamente, uma ilha onde pudesse realizar, em paz, aquilo que me tem sido o meu próprio viver: ler, escrever, pensar, refletir, estudar. Acredito ter criado um mosteiro particular. Mais do que isso: um monastério, meu lugar monástico, o desejo de viver aparentemente sozinho, afastado, recolhido, produzindo livros nos quais pudesse, eu, contar e cantar a minha, a nossa terra. Algo disso, sei que o fiz. Mas angustio-me quando me vêm à lembrança as perturbadoras palavras do poeta inglês John Donne:

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. (…); a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano.”

Eis, então, que me vem o conflito: seria, isso, verdade?  Ou, então, somos nós que ainda não entendemos? Seria, eu, o grande equivocado? Ser atropelado pela multidão ensandecida ou recolher-se ao silêncio, à solidão tão arduamente buscada? Como manter-se lúcido em tempos ensandecidos? Como viver e sobreviver entre ondas e maremotos, sem perspectiva de repousar na praia?

“… a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”. É verdade, sinto-o na carne. Cada vez mais, lá se vão embora pessoas queridas: parentes, amigos, conhecidos. E, cada vez mais, essa certeza de uma realidade para a qual nunca fomos preparados: viver é perder. Ganha-se a vida, a grande bênção de existir. Mas, a cada dia, vamos perdendo-a, com tudo aquilo que parecia pertencer-nos. Quanto mais se vive, mais se perde. As perdas parecem-nos muito mais poderosas do que os ganhos. Pois, na verdade, nunca nos damos conta do quanto fomos premiados com apenas o misterioso fato de termos nascido. Penso ser nostalgia da eternidade… .

Perdoe-me, o eventual leitor, pelo que lhe pareça ser pessimismo do escriba. Não o é. Acredito tratar-se de um amargo realismo que a mim, também, me maltrata. Se estamos em um naufrágio universal, não é estupidez acreditar em solução para todos? Quem puder há que procurar uma tábua de salvação. E ela não está nas multidões, nas massas, nas turbas. Está – e creio nisso absolutamente – em pequenas comunidades onde liberdade e fraternidade possam conviver. E eis o verbo desafiador: conviver, viver-com. Coexistir, mesmo sendo difícil, é possível, civilizatoriamente necessário. Mas conviver continua sendo um ideal ainda distante, a mais ansiada utopia humana.

Heiddeger entendia ser, o seu, o tempo “em que os deuses já sumiram e Deus ainda não chegou.” Continuamos, nós, no tempo desse não-mais e do ainda-não. Não-mais temos, ainda-não conseguimos ter. E daí?

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