“In Extremis” (76) – Envergonhar-se da própria vergonha

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(imagem: Larisa Koshkina, por Pixabay)

Quando se perde a vergonha, perde-se o próprio sentido da vida. Pois, a vergonha é ultrajante. E, se há quem aceite ultrajar-se ou ser ultrajado, nada e ninguém restam para respeitar ou ser respeitado. Se não nos respeitarmos a nós mesmos, se não respeitarmos instituições legítimas ou o senso moral definido por décadas de tentativas e erros – estaremos negando-nos como seres civilizados, como comunidades sólidas. O Brasil está desafiado a definir-se: somos nação ou, apenas, povo ocupando, desordenadamente, um território?

Escolhendo, por uma maioria de eleitores, homens despreparados, fanáticos, medíocres, carregados de ódios para comandar este país – ao fazê-lo, cometemos uma vergonha histórica, repetindo o que fizeram os estadunidenses ao entregarem o poder a um extremista como Trump. E não se trata mais de alegar respeito à escolha de maiorias, porque maiorias também erram. Maiorias podem ser manipuladas. Maiorias têm, também, o seu momento de irresponsabilidade. Maiorias condenaram inocentes e glorificaram bandidos. Vide o voto popular para escolher Jesus ou Barrabás.

Votar em quem não se conhece – repito-o e repito-me – é tão grave quando deixar um filho à guarda de desconhecidos. No homem de consciência bem formada, habita o reconhecimento pelo erro, especialmente quando tantos males este causou a tantos outros. Digo-o com experiência de causa, de vergonha de um meu voto irresponsável. Pois votei, sim, em Fernando Collor no segundo turno daquela eleição. Meu candidato, Leonel Brizola, não chegara ao segundo turno. E Collor – um desconhecido, farsante, “caçador de marajás” – era a alternativa para derrotar o metalúrgico em ascensão, Lula. Votei, então, em Collor para não votar em Lula. Aviltei o meu voto, mesmo alegando ter escolhido o “mal menor”. Ora, não há mal maior ou menor. Mal é mal. Menor ou maior é aquilo que o mal causa. Collor causou-nos um grande mal.

Envergonho-me da vergonha que cometi e daquilo que ela causou. Nos Estados Unidos, eleitores envergonharam-se da vergonha de ter elegido Trump, ídolo e mestre do homem que está em Brasília. Este país precisa, urgentemente, envergonhar-se da vergonha que provocou. E que está destruindo nossa reputação no mundo, que nos humilha perante as nações. Ou não é vergonhoso um governante negar a existência da pandemia, permitir a destruição da Amazônia, fomentar o uso de armas assassinas pela população, ignorar os milhões de famintos que, para sobreviver, cairão, inevitavelmente, nos braços do crime?

Agora, o alucinado de Brasília revelou, por inteiro, o seu amor pela tirania. Pois, encerradas as eleições, ele explicita o lema que o inspira: “Deus, Pátria e Família”. Meu Deus! Ele ressuscita o lema dos fascistas brasileiros ainda nas décadas de 1930/40, imitadores de Mussolini, os então chamados integralistas – de Plínio Salgado – que propunham o domínio do Estado, o controle do povo, inspirados no que lhes era a trilogia santa: “Deus, Pátria e Família”. A diferença, apenas, está no que é o grande perigo: Plínio Salgado foi um grande homem, intelectual, culto com um ideal equivocado, ditatorial. E o homem que pretende imitá-lo tem a mediocridade perigosa de um simples fanático de palanque. Um fanático que se apoia em ressentidos agrupados por militares da reserva saudosos da ditadura que nos martirizou.

Envergonhar-se da vergonha é virtude de pessoas decentes. Negar a vergonha produzida é testemunho lamentável de irresponsabilidade.

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