“In Extremis” (79) – Rua do Porto, meu livro dos 80 anos

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Rua do Porto. (imagem: acervo Cecílio Elias Netto)

À informação do meu editor – “o livro sairá da gráfica nos primeiros dias de dezembro” – as palavras escaparam-me espontaneamente, naturais como lágrimas dos olhos. Permitam-me repeti-las: “A minha alma glorifica o Senhor”. Foi o meu Magnificat, rendição de graças, sensação vivificante de estar perto de um sonho que o tempo fizera parecer-me impossível. Meu editor e amigo – Arnaldo Branco Filho – fora o meu anjo de anunciação: “Seu livro está nascendo.”

Haverá quem se estranhe do meu júbilo: “Mas não é apenas mais um livro?” Sim, é um outro livro. Mas não apenas mais um livro. Nele, há toda uma história pessoal que, ainda hoje, me encanta. E um tão ardente desejo que, desde a adolescência, me inflama.  Ora, eu queria, desde a infância, ser escritor. Ainda quero e, por isso, tento. Eu lia compulsivamente, tanto a ponto de queimar-me a retina dos olhos. Entre os brasileiros, além dos clássicos – Machado de Assis no alto das estrelas – dois escritores alimentavam-me os sonhos: Jorge Amado e Érico Veríssimo. As suas eram histórias apaixonantes, dramas, tragédias acontecidas na terra onde cada qual nascera. A Bahia, a Ilhéus de Jorge Amado, seus personagens absolutamente humanos. A saga gaúcha – admirável, heroica – narrada por Érico Veríssimo. E um projeto meu de vida: ser escritor em e de minha terra.

Vivi, desde então, um sonho dourado: escrever um romance da e na Rua do Porto, nosso palco iluminado de tantos acontecimentos; nosso berço. Ou melhor, mais ainda: “Rua do Porto – pia batismal de um povo.” Da gente piracicabana, dos aqui nascidos e dos que aqui escolheram para viver. Quanta história, quantas aventuras, quanta riqueza na construção desse palco de nossa vida onde o drama aconteceu em toda plenitude: na tragédia e na comédia! E na tragicomédia do cotidiano.

Mas adiei, fui adiando. Havia urgência e vontade de outros livros. Ou teria sido medo meu de não saber narrar a grandeza histórica dessa rua tão singular? Talvez, talvez… O fato é que a chegada da pandemia me trouxe, entre tantas ansiedades, a de precisar escrever “o romance da Rua do Porto”. Ao longo do desafio, dei-me conta de, na verdade, estar, eu, escrevendo não um romance, a história da rua que é nosso berço. Eu escrevia – e com paixão de amante irrecuperável – a minha história com a Rua do Porto, a minha Rua do Porto, num encantamento verdadeiramente confessional. Foi como se, enfim, eu me rendesse a um cativeiro de amor. E a uma compreensão definitiva: a Rua do Porto não é de uma cidade, não é de um povo. Cada um de nós tem a sua própria Rua do Porto. Ela, assim, assemelha-se à mãe generosa que se dá a todos. Ou à meretriz que, parecendo de muitos, não é de ninguém.

Se aconteceu a todos, a pandemia trouxe-me, também, uma outra e ainda maior valorização da vida. Vi-me frente a frente com o tempo. E tenho consciência de – por mais amplo possa ser – estar no último dos tempos meus. Logo, nada mais me restou do que – o mais inteligente e apressadamente possível – acelerar-me. E, então, beber, ansiadamente, a água da fonte. Assim foi, então, que concluí este que, agora, sai do forno e que é o livro dos meus 80 anos: “Rua do Porto – pia batismal de um povo.”

Ouso dizer que, terminando-o, também em mim “o Senhor fez maravilhas”. Do útero de minh´alma, gerei um filho quase às vésperas desse novo Natal. É o presente que recebo. E é, especialmente, o que ofereço à nossa gente consagrada na exuberante pia batismal da Rua do Porto. Rejubilo-me.

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