“In Extremis” (8) – Beijar o pão

 

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(imagem: reprodução Pexels)

A experiência, essa aventura da velhice, tem-me sido surpreendente. Para não dizer que fascinante. Começo a entender – e isso é comovedor – o que me diziam os antigos: “ao envelhecer, voltamos a ser crianças.” Deparamo-nos – é o que sinto mais e mais – com outras facetas deste mistério que é vida. O coração amansa de ternura até mesmo pelo nada.

Ora, sei ser, a aventura de viver, uma história toda individual. Cada pessoa tem a sua, acho que conforme a construiu ao longo da vida. Construiu, escrevi? Eis outro mistério que não vale a pena querer decifrar. Pois viver é como ser lançado em alto mar num barquinho frágil. O remador tem que decidir entre opções tão poucas: deixar-se levar pelas ondas, enfrentá-las, encontrar a harmonia entre querer ir e ser levado. Acho ser, essa última, a escolha mais sábia: o ser não sendo; o não ser sendo. É o grande jogo. Difícil para alguns; divertido para outros.

A criança acolhe a fantasia como sua esplêndida realidade. O homem tenta fazer, da realidade, sua fantasia. É o balançar do barquinho, os altibaixos das marés. A criança acredita – entendendo no coração – seja, sua casinha, um palácio de reis e rainhas. O homem faz palácios fingindo possam, eles, ser um lar. A criança encanta-se com seus carrinhos de brinquedo; o homem tenta fazer brinquedo de seus carros. É um eterno faz-de-conta, com a diferença essencial de, para a criança, ser um sonho encantador e, para o homem, geralmente, um pesadelo.

Se o homem volta a ser a criança que foi, angustio-me ao imaginar que homem virá a ser a criança de agora. Quais os sonhos dela, num tempo de descrenças, de materialismo alucinante, de individualismo egotista e ególatra? A essa criança, estamos apresentando um mundo onde possa, ela, sonhar, brincar, fazer-de-conta – ou um mundo sem sentimentos, com a eficiência dos robôs? Ora, preciso aprender a não me preocupar com isso, pois o tempo, que me resta, é o deixar vir à luz a criança que fui. Sinto estar acontecendo.

Penso nisso por causa de um pedacinho de pão, uma sobra que, num canto da pia da cozinha, me atiçou a consciência. Pois uma voz distante – mas de vívida presença – me disse, entre ensinando-me e repreendendo-me: “Não jogue fora. Beije o pão e deixe-o num cantinho do quintal. É o corpo de Jesus que irá alimentar, também, os passarinhos.” Obedeci de imediato e coloquei o naco do pão num vasinho da varanda, onde passarinhos vão ciscar. Emocionei-me e me emociono ao escrever. Era a voz de minha mãe, marcando-me a alma, marcando-me a vida. E a confirmação de uma verdade que o homem faz-de-conta não existir:  se somos a criança que éramos, somos, então, o fruto cultural dos pais, muito antes de o ser da sociedade, da escola, da cultura. E essa certeza me traz um alívio imenso ao dar-me conta de não mais ter filhos-crianças para educar, para orientar, para estimular-lhes os sonhos.

Tenho certeza de que estaria desorientado, como vejo acontecer com muitos jovens pais. Como orientar um filho, hoje, para a vida? Para qual tipo de vida? Para tentar viver a paz do coração ou a guerra das disputas, competições, da produção e do consumo sem limites?  Quais princípios morais e humanistas sobraram para ser transmitidos? Prepará-los para viver ou apenas para sobreviver? Para que sejam eles mesmos ou simples objetos manipulados e amoldados por uma sociedade enlouquecida?

E se eu lhes ensinasse ser preciso beijar o pão antes de jogá-lo fora? Será que eles zombariam de mim ou guardariam com ternura o ingênuo conselho amoroso?

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