“In Extremis” (90) – Magistral e alentadora lição democrática

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Estátua da Liberdade. (imagem de Jackie Ramirez, por Pixabay)

Após ver e ouvir a posse de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos, sento-me para escrever sob forte emoção. Fortíssima. Mas não sei, ainda, defini-la. Pois é uma confusão, mistura, encontro de sentimentos aparentemente antagônicos ou contraditórios entre si. Estou, ao mesmo tempo, envergonhado e com outro ânimo, triste e esperançoso, com raiva e com alegria. Parece-me um reconforto, com a certeza de, nestes meus últimos tempos, viver cada dia como se fosse o último e o primeiro. Vive-se a noite com toda a sua misteriosa escuridão para, em seguida e à primeira aurora, viver o dia saboreando cada minuto, eternizando cada hora.

Vergonha, tristeza e raiva eu as senti, sim, ao compreender a imensidão de valores que separa o nosso país dos Estados Unidos, vivendo, ambos, os mesmos tempos de horror, de ódios, de negativismos, de ranços que tantos sofrimentos causaram. Vergonha de presenciar o Brasil cada vez mais apequenado, com um governo que se tornou pária no mundo, com mediocridades inacreditáveis para uma nação que tantas glórias já obteve apesar de nossos muitos fracassos. Tristeza por ter sido tão agudamente invadido por aquela onda de civismo, de seriedade, de reação do povo estadunidense, também traído. E raiva por temer que nada mudará no Brasil diante do fanatismo e idiotice de governantes e seus seguidores que não têm grandeza para reconhecer erros e tentar outros caminhos.

Um dos mais significativos atos do, agora, trânsfuga Donald Trump – que a grande maioria de nossa gente ainda desconhece – foi o indulto presidencial dado a um dos mais terríveis extremistas ocidentais, Steve Bannon. Este já fora condenado por graves crimes contra a democracia, um dos cérebros do derrame de informações falsas que culminaram no êxito do Brexit, de Trump e de Bolsonaro. Nunca se tratou de divergências entre o que se convencionou identificar como direita e esquerda. Foi, na realidade, a ressurreição de um ideário fascista que já levou o mundo a catástrofes sem fim.

Quando Trump se negou a dar posse a seu sucessor, ele escreveu um dos capítulos mais medíocres da história democrática em nossos países. Lembrou o que, entre nós, fez o merecidamente esquecido João Figueiredo, negando-se a reconhecer o retorno da democracia no Brasil. E é, também, o que faz Jair Bolsonaro, recusando a agir como presidente de um país e atuando como se fosse dirigente de um time de futebol amador que não suporta a contestação.

Ora, sou suficientemente experiente para saber que Joe Biden irá enfrentar o radicalismo vigoroso das multidões de ressentidos de seu próprio país. Mas a sua presença no cenário político internacional é uma esperança de o Ocidente – de que o Brasil faz parte ainda que a contragosto de alguns – retomar valores humanos que estavam sendo solapados. Biden, simbolicamente, trouxe uma mensagem de fé, de espiritualidade, de humanismo que – espero, eu, em Deus – contagie e renove o entusiasmo de milhões que, como este escrevinhador, não viam mais luz no final do túnel.

Não é verdade que “tudo o que for bom para os EUA é bom para o Brasil”, como se falou no passado. Temos que viver, cada vez mais sólida e eficazmente, a nossa cultura. Mas é impossível negar o espírito de liberdade e de civismo do povo estadunidense. Tudo pode acontecer. Mas os Estados Unidos – pela maioria de seu povo – voltaram a empunhar a bandeira democrática que Trump tinha maculado. O civismo da posse de Biden foi uma magistral e alentadora lição de Democracia. De reinstalação democrática.

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