“In Extremis” (92) – Porque “os humildes herdarão a Terra”

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(imagem de artistlike, por Pixabay)

Estou longe, ainda, de preocupar-me com vida após a morte, com o depois, com o futuro que me aguarda. Pois, até aqui, mantenho o fascínio pela Vida por si mesma. Em si mesma. Não consigo nem mesmo lamentar-me do que poderia parecer-me “tempo perdido”, a preocupação com o secundário, com o circunstancial. Não houve “tempo perdido”. Houve e há um riquíssimo aprendizado. E, de certa forma especialíssima, sinto viver uma infância do conhecimento, muitas vezes espantando-me com o que me parecia tão corriqueiro e que, agora, se me mostra tão revelador. Um botão de flor, por exemplo. Acompanhar a sua luta para nascer, para desabrochar, um dia-a-dia emocionante e comovedor. Ou uma aranha fazendo a sua teia, algo que, de semelhante, vi apenas nas mulheres rendeiras do Nordeste.

Há, porém, que se encontrar a humildade cultural, a da inteligência. E – digo-o por mim – evitar a grande tolice de dar opinião sobre o que se desconhece. Fui – e penso ainda ser, de quando em quando – um desses grandes tolos, tornando banal e vulgar aquilo que está na dimensão do sagrado, do divino e, portanto, do misterioso. É render-se ao que Rudolph Otto batizou de “mysterium tremendum et fascinans”, o numinoso já proclamado antes. Nós, humanidade, costumamos profanar o sagrado. Mas, antes disso, o sagrado sagrou o profano.

A Boa Nova de Jesus – que, ainda, não se realizou – penso entendê-la como a mais admirável síntese da sabedoria que o precedeu. Comecei a percebê-lo ao mergulhar nas ciências das religiões, na incrível percepção de, em cada era, surgir o reformador, o renovador. Buda, Confúcio, Lao Tsé, Moisés – e o sintetizador dessa consciência humana: Jesus. Isso é história. E o Ocidente – que nasce dessa essência judaico-cristã – esbanja, despreza, banaliza, minimiza a sua origem. Não se trata – nesse meu crepúsculo, insisto nisso – apenas de religião, de questão de fé. Trata-se de uma cultura, da maneira de povos terem-se constituído, de raízes essenciais. A nossa trágica economia de mercado livre não conseguiu comprar ou vender o essencial de nossa civilização. Mas, desgraçadamente, anestesia sociedades, hipnotiza povos.

“Bem-aventurados os humildes, porque eles herdarão a terra!” Se a maravilha do Sermão da Montanha foi uma abertura de caminho, surge, também, como profecia. Pois estamos muito próximos de isso acontecer: humildes herdando a terra. Mais do que herdar, conquistando-a. Mais ainda: reconquistando-a. E não pacificamente, mas pela violência da indignação, pela injustiça inominável da fome. Os humildes estão próximos de herdar a terra por uma razão absurda: os poderosos, os ricos, os remediados não soubemos cuidar dela. Exploramo-la com voracidade irresponsável.

Uma pergunta: sabemos, realmente, o que seja democracia? Ora, não há e não pode haver democracia verdadeira onde e quando a economia é injusta, privilegiando poderosos e martirizando os mais pobres. Esse vírus acelerou a roda da história. Para outra direção. Ou – por que não? – para uma retomada de rumos, para o retorno ao essencial. Por que tão poucos com tanto e tantos com tão pouco ou com quase nada? Por que o desperdício irresponsável de minorias diante da necessidade vital de maiorias de miseráveis? Não há mais, porém, a indagar. Pelo desespero das massas e pela irresponsabilidade dos acomodados, o vírus acelera a reconquista da terra pelos periféricos bem-aventurados. Os humildes. Quem sobreviver verá. Desde, porém, se tiver olhos de ver, ouvidos de ouvir, coração de sentir.

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