“In Extremis” (95) – No crepúsculo, lições de abismo

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(imagem de Jan Lüddemann, por Pixabay)

Sob tanta pressão e até mesmo angústias, é inevitável – a quase todos nós – essa sensação de abismo que nos assalta. Uma narrativa – e não me recordo de outra mais eloquente – descreve-nos esse sofrimento intraduzível. É a de um pensador quase esquecido, Gustavo Corção, e de seu também quase esquecido livro, “Lições de abismo”. O personagem reflete, sofre e se revê diante da iminência da morte. E descobre que o homem tolo esbraveja contra aquilo que não aceita e não entende. Mas outro homem – raro tipo – extrai lições do abismo nos males que o afligem.

Na pandemia, se não caímos no abismo, estamos à beira dele. O medo tornou-se plural: medo do desconhecido, do desemprego, da falência, medo da morte, da perda. São muitos os medos, mesmo que hesitemos em admiti-lo. E não seria humano se não os tivéssemos. O medo interfere em decisões, dificulta ou anula entendimentos, impede reflexões. E, quando coletivo, social, o medo produz – mais perigosamente ainda – conflitos que podem se transformar em tragédias: os que muito têm não querem nada perder; os que têm pouco lutam para preservar o que possuem; e os que nada têm rebelam-se. O medo de aprender com a História congela o aprendizado até mesmo do óbvio. Ou haverá soberanos que, em seus palácios, queiram lembrar-se da Revolução Francesa, do “quem não tem pão que coma brioches?”

O cômodo silêncio de falsas elites é estrondoso, mais do que o grito dos desesperados. “Coisa de comunistas”, dirão os indiferentes dos jardins, que não percebem estarmos no crepúsculo. De um estilo de vida, de uma economia cruel. Crepúsculo deles também. O entardecer de uma era, a proximidade de uma noite ainda imprevisível. Os desesperados que insistem no retorno daquilo que era – e de como era – apenas retardam a discussão urgente do que será, que deverá ser, de um fazer novo. Defendem, enlouquecidamente, a manutenção de uma economia de mercado livre mas, ignorantemente, não se dão conta de que o próprio capitalismo se transforma. É de sua vocação, esse renovar-se quando os celeiros já foram tomados. Os que sabem dessa renovação dão, ao capitalismo, o seu nome provisório: Avancionismo. No estertor de um mundo, há que se apropriar do máximo que for possível. E o Brasil é o campo mais desprotegido para o último ato.

Das espadas, a ingratidão é uma que mais fere o coração humano. Pela simples razão de não se fugir ao sofrimento do remorso. Pois, mesmo fingindo para si mesmo, o ingrato não escapa ao remorso. Que devora aos poucos. E a mais doída de todas as ingratidões é a do ingrato para com a Vida. Pois a Vida não perdoa. Ela cobra o preço de tantas maravilhas – entre dores e lágrimas – que nos dá. Como pode alguém – que conheceu a pobreza e dela escapou – esquecer-se de sua própria história? Como pode não ter compaixão pela miséria do outro? Auxílios emergenciais são o que o próprio nome define: para emergência. Mas a pobreza brasileira é estrutural, nada tendo de emergente. Ao Brasil, por depender de falsas elites, nega-se até mesmo o direito de aprender com as suas intermináveis lições de abismo.

O abismo que nos espreita pode tragar-nos a todos. Como o vírus, ele não escolhe entre moradores de jardins e os das ruas. Enquanto privilegiados – por não terem mais o que fazer – ficam tentando censurar jornais, o estopim da realidade já chega aos barris de pólvora. Nesse crepúsculo, elogiar e apoiar gestores do caos é ser cúmplice do crime de lesa humanidade. Mas a Vida cobra. E, para irresponsáveis, o preço é mais alto.

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