“In Extremis” (96) – A insustentável dureza do ser

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(imagem de Free-Photos, por Pixabay)

Nos 1980, o mundo cultural encantou-se com um livro apaixonante: “A insustentável leveza do ser”. O autor, o checo-francês Milan Kundera, conseguira, através dos personagens, como que desnudar a alma humana na revelação e conflitos de nossas paixões. O perturbado leitor – cada qual à sua maneira – encontrou, naquelas páginas, um inquietante perfil de si mesmo. Kundera – com sofrida e múltipla experiência de vida – mostrara estar, a leveza do ser, em sua reveladora fragilidade. E isso nos é insustentável.

Lembrei-me de Kundera diante da percepção – ou sensação – de estar, eu, muito próximo do limite da indignação. Tão próximo que, confesso, quase me deixei sucumbir ao desejo de desistir. Tolice, porém. Tolice do cansaço e da impotência diante do absurdo. Até quando tudo isso? Qual a saída? Quando acontecerá, nas pessoas, a cólera justa, a que força reações contra injustiças crescentes?

Se, a estes escritos, dei a chancela “in extremis”, foi pela certeza de minha realidade pessoal: ingressei na jornada última. E isso me é admirável, pela aventura de poder render graças por, nesse longo tempo, ter participado da Vida. Se a longevidade traz o descanso, ainda não quero tê-lo.  Pergunto-me, dolorido: como descansar, ter paz, serenidade diante de tantas atrocidades universais? Como se deliciar com um pão se, a poucos metros, há pessoas gemendo pelas migalhas? Onde estão, onde ficaram, para onde levaram as tão antigas demonstrações coletivas de indignação? A fome de muitos é fome de todos. Assim, também, como o medo, a esperança, a alegria, a dor.

O vírus despertou esse nosso tão natural espírito de solidariedade. Ele existe, mesmo sem nos lembrarmos dele. Há alguns testemunhos e exemplos aparentemente banais, mas significativos: se se ver uma criança perto de ser atropelada, instintivamente corre-se para protegê-la. Se alguém cai na calçada, um outro apressa-se para acudi-lo. Somos, pois, congenitamente solidários, um instinto natural de quem sabe ser parte do todo. “Uma folha que cai mexe com uma estrela.” – já nos disseram os sábios.

Mas há a fatídica questão do poder. E este – em qualquer instância – leva à disputa, à competição. E estas despertam nossos também primitivos instintos possessivos. Pois, mesmo solidário, o homem é um animal. O poder embrutece o homem. Já nos foi ensinado desde o século XVIII: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente” (Lord Acton). E, quando se dá prioridade à economia, a dureza de coração torna-se tal que o ser humano parece não existir.

Lembremo-nos: “É a economia, estúpido!” – bradou um assessor da candidatura de Bill Clinton, grito tornado bordão. Sim, tem sido a economia. Que, porém, foi miseravelmente desgarrada de um sentido mais digno de humanidade. Desde o trio Nixon-Reagan-Tatcher, o mundo caiu na sedução da economia de mercado livre, sem qualquer regulação. Ora, as relações de troca existem desde quando o homem encontrou seu vizinho. A primeira transação imobiliária – que a História conta – foi quando Abrahão adquiriu o monte Hebron para seu povo. Compra e venda, capital e trabalho, relações comerciais – isso tudo, pois, é intrínseco à história humana.

Mas, conforme Delfim Neto sempre apregoou: “Economia não é ciência!” De minha parte, precisei de três faculdades para compreender: economia não é ciência. E, hoje, acredito seja arte, uma perigosa arte: a de fortalecer os mais fortes. Mesmo quando criada em nome da “ditadura do proletariado”… Mudam as moscas, o monte é o mesmo.

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