“No jardim de um mosteiro”

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Pode, a música, definir destinos, direcionar vidas? Creio que sim. E mais poderosamente do que sequer imaginamos. Basta perceber: a todo momento, cada um de nós tem uma música passeando no cérebro. Para confirmar, pergunte a quem está a seu lado: “qual a música que está em sua cabeça?” E a pessoa, mesmo não o tendo percebido anteriormente, responderá, ainda que só cantarolando.

Há músicas que nos acompanham por toda a vida. Arrisco-me a dizer ser algo semelhante ao perfume da mulher amada, seja a que existe, seja a do amor que se acabou. Basta senti-lo no ar para se lembrar dela, com alegria ou pungentemente. Há músicas que, também, assim são. Basta ouvi-las para ser movido interiormente, levado ao passado, a algum acontecimento, a sentimentos e emoções.

Quando o ainda Papa Bento XVI, revelou que, após a renúncia, iria se recolher a um mosteiro e ficar escondido do mundo, tive reações estranhas. Mas boas. De repente, veio-me – não sei se ao coração, se à inteligência – a música “No jardim de um mosteiro”, de Albert Ketelbey. Uma quase nostalgia me apanhou e, então, remexi em meus velhos CDs. Aos primeiros acordes, emocionei-me e me vi envolvido por uma profunda sensação de paz, de saudade, de lembranças e, também, de frustrações.

Abro, porém, um parêntese para tentar fazer-me entender, num tempo em que eu mesmo me sinto perplexo, em meio ao naufrágio geral e agarrado apenas a algumas tábuas que me impedem ser tragado pelas águas devastadoras. Que seja um simples preâmbulo.

Nasci em plena II Guerra Mundial. E, ao som distante de canhões e explosões de granadas – entre morticínios e horrores – vim ao mundo num lar de pais que haviam empobrecido. Minha mãe – de verdadeira princesa árabe que fora, com seu berço de ouro – vivia, ao lado de meu pai, as dores de uma quase miséria. Mas, desde que comecei a ver e a ouvir, descobrir haver, em minha casa, um culto permanente ao belo. Ainda pequenino, eu via minha mãe pintando suas telas com paisagens imaginativamente suaves; ao lado dela, meu pai com o violino que gemia e ria ao mesmo tempo, como se extravasando dores e esperanças do violinista. E, ao piano, minha irmã mais velha, exímia concertista, professora de música, inundando a casa com Chopin, Beethoven, Mozart, Schubert, Schumann, Lizt.

Nasci, pois, sabendo existir o fragor da guerra cruel, mas embalado pela música de meu lar, pelas belezas das artes cultuadas por minha família. Depois, os demais irmãos – e eu mesmo – seduziram-se pela música. E havia violinos, piano, acordeons, violões. E a música dos clássicos ecoando, dia e noite, por toda a casa. Foi quando – por volta dos meus oito anos – minha irmã colocou, numa antiga vitrola – velho aparelho de se colocar discos – um que, aos meus ouvidos, pareceu trazer sons da paz do paraíso. Era Ketelbey, com o seu extasiante “No jardim de um mosteiro.”

Essa música me marcou de tal maneira que permanece até hoje, quando a velhice me chega. Sem que eu percebesse, ela definiu-me um destino, deu-me a força espiritual para ir em busca de um mundo e de uma forma de viver apaixonantes. Ketelbey plantou, em meu coração, a certeza de ser possível um mundo de paz, mesmo em meio a guerras. Apenas agora, percebo-o com inteira clareza. Pois – quando, há muitos anos, renunciei a ser dono de jornal – escrevi um último artigo de despedida e revelei meu propósito: “Vou ser jardineiro.” Não apenas fazendo jardins com as mãos, mas, especialmente, plantando-os dentro de mim. Quando me dei conta, eu tinha criado um pequenino mosteiro para mim. Mesmo recolhido, porém, não consegui ausentar-me do mundo.

As palavras do Papa – “ ficar escondido do mundo, recolhido a um mosteiro” – trouxeram-me – digo-o sinceramente – profunda inveja dele. E os sons de “No jardim de um mosteiro” agora não me apaziguam, mas me entristecem. O Papa – mergulhando em orações e em uma vida contemplativa – realiza, ao mesmo tempo, a “fuga mundi” e o “contemptu mundi” – a fuga do e a renúncia ao mundo. Sem, no entanto, alienar-se. O grande teólogo – um espiritualista singular – passa a viver uma vida realmente mística e contemplativa. Ele conseguirá, pois – e ainda mais – aproximar-se dos mistérios da vida, da paixão, da morte, por uma perspectiva espiritual que não exclui a ação e a prática.

No seu recolhimento, Bento XVI – mesmo dizendo-se escondido do mundo – haverá de devolver, à humanidade, o verdadeiro e atual sentido de vida contemplativa, que é produtiva sem ser materialista, que é de amor aos homens sem se alhear da tragédia humana. O conhecimento mais revelador brota da contemplação. Mais profundamente ainda, se no jardim de um mosteiro.

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