A Zona da Rua Benjamin

(Adão e Eva, 1531, Staatliche Museen, Berlim)

Durante o dia, naqueles 1940, até se podia andar e passar pela rua Benjamin Constant, entre as ruas Cristiano Cleopath e São José. No entanto, à noite, era o limite desafiador, o lugar proibido, a rua do pecado, a efervescência que tinha cheiro e sons estranhos. E eles entravam pelas narinas e pelos ouvidos. Na rua Benjamin, havia odores de mulheres com perfumes estranhos e excitantes, sons de risos e de gritos e alegrias desconhecidas na noite silenciosa de Piracicaba. Era nela, a rua Benjamin, que fica  a zona do meretrício, o lugar do pecado e, portanto, do fascínio a crianças e adolescentes.

O lugar era feito de estranhezas, mas com sedução especial. Na verdade, estranha e sedutora era toda a área central de Piracicaba, com seus clubes, bares, restaurantes, uma cidade que parecia viver de contrastes e de confrontos: de dia, era uma cidade pacata, trabalhadora, sisuda, séria; de noite, boêmia, com sons de serestas, com alegrias nos bares. As famílias pareciam viver vidas duplas: de dia, estavam nas calçadas, no comércio, nas ruas; à noitinha, ainda se relacionavam, cadeiras às portas das casas, conversas, crianças brincando nas ruas. E, após as 22h., o recolhimento, como se dando espaço a uma outra cidade que regurgitava de boêmia, de amores, de aventuras.
A rua Benjamin Constant, pode-se dizer, era o limite entre o que se chamava verdadeiramente de “a cidade” e bairros. Pois, tendo o riacho Itapeva correndo em parello, à margem direita (a da rua Benjamin) ficava a cidade. E, à esquerda, o Bairro Alto que, na verdade, praticamente terminava na altura do Cemitério da Saudade. No lugar do Estádio Municipal, havia o fantástico e inesquecível Bosque do Barão, com árvores frutíferas, lugar também misterioso que, naqueles anos, mal poderíamos supor viria a ser transformado na nova zona do meretrício, substituindo a da rua Benjamin, na rua Silva Jardim, o famoso Cano Frio. Quem estava nos bairros, dizia “ir à cidade”, quando se dirigia às ruas centrais.
Mas os mistérios da Rua Benjamin, a rua da boêmia noturna, da zona, eram fantásticos. Não se podia imaginar, durante o dia, com o comércio funcionando, a chamada “vida de pecados” que abrigava a rua famosa. Na Rua Voluntários de Piracicaba, quase na esquina da Benjamin, ficava a mais famosa casa de prostituição da zona, a Pensão Royal. Nela, os coronéis – políticos, fazendeiros, grandes proprietários – deixavam de lado a sisudez e os ares sérios para se esbaldarem na bebida, no jogo e com mulheres, as então chamadas “mulheres de vida airada”.
Nesse meu garimpo nos fundos dos meus baús, uma figura me será sempre inesquecível: Estefânia Sampaio, de quem, sempre que posso, canto não os encantos dela, mas os meus por ela. Estefânia era amiga teúda e manteúda de um operário comunista, Nelson Sampaio. Prostituta durante parte da noite, mulher de Nelson após a boêmia e durante o dia. Era impossível não notar a presença de Estefânia, onde quer que ela estivesse, fosse de dia, fosse de noite. Ela desafiava os costumes e, também, os poderes.
Magra, cabelos compridos, seu rosto era uma máscara, como a dos palhaços ou dos antigos artistas, empalidecido de pó-de-arroz, enquanto os lábios se avermelhavam do uso exagerado de batom. Nas maçãs do rosto, como a quebrar a monotonia da palidez, a pintura com rouge, como se chamava o carmim que se usava à época. Nas minhas lembranças, não poderei dizer de uma Estefânia atraente como figura feminina. Mas guardarei, para sempre, a atração irresistível da força de sua personalidade, do seu magnetismo como pessoa humana.  Estefânia, companheira de Nelson, era ativista comunista como ele. E, na Rua Benjamin, ela era responsável pela doutrinação das prostitutas, quase todas analfabetas, mulheres simples, mas que se deixavam despertar pelas promessas de Estefânia de um mundo melhor e mais justo, “o comunismo igualando todas as pessoas, um mundo sem classe, igualdade para homens e mulheres também.”
A última recordação que tenho de Estefânia, já quando a rua Benjamin Constant expurgara a zona do meretrício, foi quando do golpe militar de 1964. Por aquela mesma rua, a Benjamin, como se fosse eternamente sua, Estefânia comandou um pequeno desfile de mulheres com cartazes contra os militares. Toda furiosa, nossa La Passionaria, Estefânia parou o desfile à porta da “Folha de Piracicaba”, que eu dirigia, na esquina da Rangel Pestana com Benjamin Constant. E exigiu que eu tirasse uma fotografia, para publicar, dela com suas companheiras comunistas, protestando contra a ditadura.
Desgraçadamente, a fotografia não existiu. A pobreza minha e do jornal, naqueles tempos e naqueles anos, era tanta que nem máquina fotográfica nós tínhamos. E, muito menos, clicheria para poder publicar imagens. No fundo do baú, ficam, porém, imagens vivas de tempos vividos, que justificam a vida vivida.

1 comentário

  1. Dirceu Tarantini em 05/04/2014 às 19:48

    essa cronica,mostra a disposição de luta por um ideal,estefania não temia ser descriminada por sua profissão e dava a cara pra bater por sua crença, cecilio tbm mostra sua tenacidade e amor pelo jornalismo, mesmo sem condições financeiras na epoca,luta por um jornal para levar informções e defender ideias, e ate hoje demonstra isso,merece os parabens

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