Agridoces lembranças de Thales de Andrade

VIVER VIVE-SE VIVENDO (32)

Dou-me conta de que vivi 60% do século que terminou. Muitos viveram-no mais do que eu, em idade. Mas me sinto privilegiado por ter vivido mais da metade deste século com tanta intensidade. Privilegiado, sim, pois tudo me aconteceu muito cedo, desde a minha adolescência quando, aos 16 anos – em 1956 – eu já estava na redação do “Diário de Piracicaba”, dando os primeiros passos para a vida jornalística que não imaginei pudesse ter-se tornado tão longa. E mais privilegiado ainda por ter conhecido pessoas que, hoje, são parte da orgulhosa memória piracicabana, patrimônios nossos. Vi, ouvi, participei – muitas vezes como ator, outras como espectador, mas no palco e nos bastidores do teatro da vida em Piracicaba.

Procurando um livro em minha biblioteca, eis que me deparei com um todo ornado livro de Thales de Andrade, com uma dedicatória especial num ornato de prata, oferecido à minha primogênita, então recém-nascida, Patrícia, em 1965. E a saudade bateu forte. Thales de Andrade era amigo de meus pais, de freqüentar minha casa, sempre acompanhado de João Chiarini. Aquele homem gordo, generoso, bonachão era um dos meus ídolos literários, do qual eu havia bebido maravilhas como “Saudade”, “A Filha da Floresta”, entre tantos outros. Recordo-me de Thales contando sobre o título de seu filho, “Saudade”, algo que merece ser relembrado por, agora, já se tratar de acontecimento histórico.

Contava-me Thales que, ao terminar o livro que se tornou recordista de vendas em todo o Brasil, uma preocupação lhe veio: o título da obra. Ele queria fosse “Saudade” mas esbarrava em intelectualismos: saudade é sentimento difícil de se explicar, saudade é palavra sem definição – como as crianças entenderiam saudade, que criança sente saudade? E contava que, sendo professor primário na zona rural, fez um teste com a criançada. Quase todos sabiam o que era saudade: um tinha saudade da goiabada que comera na casa de uns tios, outro sentia saudade das férias no sítio dos avós. E um garotinho, menino negro e pobrezinho, respondeu chorando para a pergunta de Thales: “eu sinto saudade de minha mãe que morreu.” Então, Thales Castanho de Andrade entendeu que há sentimentos, ainda que indefinidos, universais. E “Saudade” se transformou num clássico da literatura infantil brasileira.

Thales de Andrade foi um dos homens mais generosos que conheci na vida, de uma bondade extrema. João Chiarini chamava-o de “a maior criança grande do Brasil”. Dois episódios, em minha vida, tiveram Thales de Andrade como personalidade determinante, aquele que me deu autoconfiança, que me fez acreditar e tentar a caminhada. A primeira vez foi em 1958, quando eu apenas tinha saído do Colégio Dom Bosco, com alguma famazinha de ter boa redação, de ler muito. Então, fui procurado por pessoas de Tatuí que, em minha casa e levados por Thales de Andrade, me propunham fazer uma palestra sobre o grande escritor tatuiense, Paulo Setúbal, pai de Olavo Setúbal, um dos donos do Itaú e político de nomeada. Coincidentemente, enquanto aquelas pessoas me faziam o convite, entrou em casa um dos meus mais queridos professores salesianos, o padre Eduardo Affonso, professor meu de Literatura brasileira e universal. Tomando conhecimento do que se tratava, foi o padre Eduardo quem deu o tema da palestra, para mim, uma criança de apenas 17 anos: “As reticências de Paulo Setúbal…” Pretensioso, topei.

Thales de Andrade seria o outro palestrante daquela noite, o principal. E aquilo me dava tremores e dor de barriga. Então, falei, falei, o garoto falando diante do mestre. Quando terminei, os aplausos de estímulo me assustaram. E Thales me deu a mais bela lição de minha vida: para me estimular, para me impulsionar, ele disse que não faria mais a palestra, querendo que a noite em Tatuí se encerrasse com as minhas. Entendi o gesto magnânimo e chorei muito. E Thales, mais do que nunca, se transformou numa das mais belas figuras humanas que jamais encontrei na vida. E foi o mesmo Thales de Andrade quem, no meu primeiro romance, foi um dos prefaciadores do livro “Um Eunuco para Ester”, ao lado de figuras inesquecíveis como Alceu Maynard de Araújo, Miroel Silveira, J. Cavalheiro, João Chiarini.

Saudade de Thales de Andrade, saudade de Thales… Saudade, talvez, de um tempo em que havia mais gigantes do que anõezinhos, tão diferentemente de agora quando não se fazem mais Thales de Andrade como antigamente.

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