Casar era um destino

Viver vive-se vivendo (24)

Tenho, nestes tempos que me sobram, escrito muito de amores. É-me, porém, uma das conclusões da vida, da longa vida: nada sobra, de uma pessoa, senão o amor vivido, o verdadeiro. Hoje, aos 67 anos de idade e mil anos de vivência, sei de meu estado: sou um homem viúvo. Não é, no entanto, a viuvez da mãe de meus filhos o que me entristece e machuca. Dói-me a viuvez do amor. Pois o amor morre antes da morte de um ou de outro. E, estranha e dramaticamente, permanece e renasce.

Por quê, se homem e mulher se amam, morre o amor? Por quê morrem os amores? Assumindo, agora, culpa de tantos fracassos é como se o círculo se fechasse, início encontrando-se com fim, morte e vida, desmaios e reavivamentos, ressurreições que alentam: amores morrem, o amor não morre! É de que tento convencer-me, talvez até mesmo como esperança: amores, que tive, morreram. Não admito, porém, morra o amor que está em mim. Pois estou e sou nele. Quando e se ele morrer, morro também. Amar é respiração.

Agora, dou um salto na cronologia buscada no fundo dos baús. Na verdade, decido ir e voltar, desprender-me de linearidades. Pois, por mais possíveis sejam os anos ainda a ser vividos, serão sempre exíguos, curtos, poucos. E a grande tragédia desse tempo que se completa está, penso eu, em continuarmos precisando de explicações e de justificativas. Pouco importa que nem sempre sejam verdadeiras. Basta-nos que elas existam.

Pergunto-me: por que o casamento morreu antes de termos, ela e eu, morrido; por que se foi o amor, antes de ter-se ido a vida dela ou a minha? As respostas, que me chegam, parecem-me simplistas demais. E, no entanto, sinto-as como verdadeiras. Ou honestas. Aquela mulher e eu – como milhões de pessoas de minha geração, em todo o mundo – casamo-nos porque o casamento era um destino. Sendo destino, tratava-se, assim, muito mais de algo racional e inevitável do que de uma escolha, de frutos do coração. Naqueles anos 1950 até meados dos 1960 – chamados, agora, de “anos dourados” – os amores eram muitos, eram amores demais. Havia imagens sedutoras no ar, o mundo parecia um sonho: o sorriso de Juscelino, no Brasil; a “Primavera da Igreja”, com o Papa João XXIII; a majestade de Charles De Gaulle. E a revelação do reino de Camelot, com John e Jacqueline Kennedy. O mundo era bonito, a vida eram amores. E o casamento, o encontro desse destino de belezas.

Em quê mulher transformei a namoradinha de minha juventude, aquela com quem me casei ao início dos 1960? Quantas mulheres vi em apenas uma: minha mãe, minha irmã, minha namorada, minha amante, futura mãe de meus filhos, minha Ava Gardner, minha Marilyn Monroe, minhas fantasias, meus sonhos? Nunca lhe perguntei se ela era tudo isso. Mas, para mim, era. E eu, que homem fui para aquela mulher? Ela nunca me disse, mas eu sei: eu seria pai, irmão, namorado, amante, futuro pai de seus filhos, o seu Tarzan, o seu Robert Taylor, o seu Marlon Brando. Mais do que um destino, casar era, também, um sonho.

O amor, no entanto, é concreto, de um realismo doloroso. Amar é sofrer, amar é suportar, amar é aceitação. Tudo isso é dor. E os jovens, em nenhum tempo, estão preparados para dividir ou para a diminuição. A juventude quer multiplicar-se, contenta-se em somar. O amor jovem é fantasticamente irresponsável. Amor maravilhoso, mas louco. Julieta e Romeu tornaram-se símbolos eternos dessa loucura de amor jovem, de um destino. Imolaram-se, com supostos 16 anos. Como seriam Julieta e Romeu depois de 10, 15, 20 anos de casados? Não há convivência na paixão. Conviver é diminuir-se, renunciar-se. Nos sonhos, os amantes são sempre belos e serenos no leito do amor. Na cama conjugal, no entanto, há roncos, pesadelos, egoísmos, a dolorosa divisão do mesmo espaço quando, dormindo, a alma voa. Dormindo, não existem tão somente dois na cama conjugal. Há cada um, com toda a sua dolorosa herança pessoal. Dormindo, não há herói ou heroína. Há uma fisiologia. Amar é, pois, doloroso.

Sou um viúvo. Isso é concreto. O abstrato – tenho que confessá-lo – foi a viuvez de mulher viva. E minha mulher foi viúva de marido vivo. A minha geração é feita de homens e mulheres que morreram, estando vivos. Fomos mortos-vivos. Não construímos lares, mas albergues. Não construímos famílias, mas sociedades. O mundo dos 196060 pareceu ser uma festa. A vida, no entanto, é dor. Minha geração não foi preparada para a dor.

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