Corpo e alma da cidade amada

Cada vez com mais convicção, continuo celebrando as minhas cerimônias de adeus. Não adeus à vida, nem adeus a mim mesmo. Mas a um tempo e a um espaço que entram em agonia final. E, ainda outra vez, sinto-me privilegiado. Pois, durante quase seis décadas, tenho sido observador, ator, espectador, testemunha desse cenário e dessa história. São quase 60 anos de ver, sentir, tocar, ouvir, cheirar, saborear, possuir e também perder a mulher amada. Até as entranhas dessa minha Piracicaba conheci, ainda conheço. Se, para a maioria das pessoas, elas morrem, ainda estão vivas em mim.

Praça da Catedral (José Bonifácio) – Foto: Jefferson/Olhares

Sabe, aquela esquina ali na Praça da Catedral, onde está uma agência bancária? Foi lá que nasci, no ventre e do umbigo da Noiva da Colina. E, de lá, acompanhei os movimentos da vida ao longo da eternidade do tempo. Por aquelas ruas, deslizavam os bondes, trafegavam carroças e charretes. Leiteiros e padeiros entregavam leite e pães nas portas das casas O guarda-noturno fazia, de quando em quando, soar seu apito, incomodando o ressonar do salto que nos chegava até o centro da cidade. Em noites especiais, a bruma do Salto cobria a cidade e sempre foi esse o verdadeiro Véu da Noiva. Está cantado em poema desde do século 19.

Sabe, ali na rua XV de Novembro, perto da Santa Cruz? Lá morava Archimedes Dutra e seu grande amor, numa casa avarandada. Mas alguém se lembra de Archimedes Dutra, quantos são os que sabem quem foi ele? E ali, na esquina do Grupo Moraes Barros – na rua Alferes José Caetano – havia a Casa Neme, do Elias Neme. Era naquela esquina que Mário Neme ficava conversando, quando de suas visitas a Piracicaba. Mas quem sabe quem foi Mário Neme?

Mário Dedini caminhava, quase todas as noites, pela rua Santo Antônio, sempre acompanhado de um ou mais de seus familiares. E ficava à porta da belíssima mansão sorrindo, cumprimentando as pessoas, disposto a recebê-las. Neguito – o mulato leproso, rei do Carnaval – ia lá, conversar com Mário Dedini pedindo apoio para os festejos carnavalescos. Pela mesma porta pela qual passavam embaixadores, presidentes e governadores, Neguito também passava. Mas quem sabe de Neguito, de Mário Dedini?

Onde está aquele banco com seu horroroso estacionamento vertical – na esquina da Moraes Barros com a Catedral – ficava o Hotel Central, considerado um dos mais belos do Brasil até a chegada da II Guerra. Nele, hotel mais do que centenário, hospedaram-se personalidades admiradas pelo Brasil e no mundo. E, às suas portas, permanecia como que ainda vivo o sangue do mais brasileiro de nossos pintores, Almeida Júnior, assassinado numa tragédia que repercutiu no mundo todo. Guardo comigo a placa – que estava à entrada do hotel criminosamente derrubado – onde se lia: “Praça da Catedral”. Para mim, é como se fosse a lágrima santa da mulher amada. Naquele placa, mantenho vivo o Hotel Central.

E aquele estacionamento ridículo, na rua Boa Morte, em frente à padaria? Pois foi lá que nasceu e onde passou a infância um dos mais controvertidos, polêmicos e amados homens públicos do Brasil. Seu nome: Adhemar de Barros. Mas quem foi ele mesmo? E, em frente ao Grupo Moraes Barros, ainda na Alferes, funcionava a fábrica de gengibirra e de cotubaína dos Andrade, de nosso amado e inesquecível Thales de Andrade. Alguém ainda se lembra dele?

Como não me indignar e me comover diante do estéril pátio perdido, também feito estacionamento, ao lado da Câmara Municipal? Naquele espaço e em outros tempos, morou o Barão de Rezende, palacete que hospedou D.Pedro II, a Princesa Isabel, o Marechal Floriano Peixoto, o Conde d´Eu. Passou a ser, por longo tempo, Prefeitura Municipal. Mas Luciano Guidotti – que não gostava de “coisa véia”, confundindo velho com antigo, história com modismo – jogou ao chão como um monte de tijolos qualquer. E, insatisfeito, mandou derrubar as palmeiras imperiais que, imponentes, engalanavam o Largo de São Benedito. Eram as palmeiras plantadas pelas próprias mãos de D.Pedro II.

Rendo graças ao Criador – seja ele em que for, esteja onde estiver – pelo privilégio de conhecer – com reverência, respeito e paixão – corpo e alma dessa mulher tão amada, a “Noiva da Colina” que, morrendo para tantos, será eterna enquanto eternos forem os que a cantaram, que a pintaram, que a descreveram, que a louvaram. Quem fica na memória não morre. Piracicaba, pois, continuará viva enquanto houver quem conte sua verdadeira e épica história. E quem a cante, quem a pinte, quem a louve em melodia ou em silêncio.

Celebro, pois, as minhas cerimônias de adeus. Sei que, para a maioria de minha gente, isso são apenas lembranças de um tempo e de um lugar que chegam ao fim. Sinto, porém, no mais fundo de mim, que somos nós – alguns poucos e esta cidade eterna – que estamos dando adeus a essa era trágica de devastações e interesses mesquinhos. Roubo ao poeta – meu inesquecível Thiago de Mello – seu suspiro de vitória e lanço-o aos ventos: “Faz escuro mas eu canto.”

 

 

1 comentário

  1. maria lucia em 03/10/2012 às 09:16

    Cecílio Elias Neto, diante dos atos de um ou alguns, em uma única localidade, de uma pequena parte do Planeta Terra, será que poderíamos ampliar os sustos e suspiros para a humanidade ? É uma hipótese – se houver um Criador Universal e, em crendo que há um Criador para tantos os convidados… e tão poucos os escolhidos ! Derrubam Palmeiras, árvores e emporcalham águas dos rios, tornam a água de insípida e inodora a fétido veneno, dizimam espécies, desaparecem amores, corrompem. Não sei se haverá um "Quando", ou se haverá um "SE"… mas, em crendo em Criador, terei muito a conversar com ele. Que seja às margens de um belo rio, ao Pôr do Sol, e nem mesmo acreditando na "belezura" da criação ao redor, belo e afetuoso sorriso mútuo – " É preciso cuidado com as criações, são tão frágeis !"

Deixe uma resposta