O chicletes e perda da inocência

Foto: Cláudia Mascote/Olhares

Foto: Cláudia Mascote/Olhares

VIVER VIVE-SE VIVENDO (33)

Algum dia, haverei de entender se é possível o corpo e a razão mancharem-se, deteriorando-se, sem, no entanto, essa toda corrupção comprometer a alma. Pois a matéria humana é corruptível e o homem – sei lá eu – somente sobrevive na integridade de sua própria alma. Nela, está o sagrado da vida, aquele fulcro que não pode ser alcançado ou atingido por outra pessoa, pois seria violação. Sinto, neste fim de caminhada, ter mantido a alma limpa, ainda que com cicatrizes e feridas.

Até meus filhos, já adultos e amadurecidos – tendo-me dado netos que acompanho à distância – estranham a minha ainda capacidade de sonhar. E sou eu, por outro lado, que estranho a estranheza de outros. Se não for o sonho, o que resta do homem? O pintor, ao pintar, dá forma e cor ao sonho. O músico, o poeta, o escritor, o escultor, todos damos apenas forma e som e ritmo e harmonia ao sonho sonhado, que nada mais é senão aquele do paraíso perdido. O homem está no seu exílio. Se não sonhar, será apenas um desterrado, sem lugar algum para ir. E há, creio eu, o lugar do retorno, não sei qual. Nem que seja a terra, o pó, o chão.

Há um ciclo de tudo o que é e está vivo. E, à proximidade do fim, sinto que os humanos somos, inexoravelmente, levados à reflexão, a revisões, talvez até mesmo às aparentemente simples recordações. Recordar não é viver, mas rever. Recordar, a memória, o conto, a mitologia, a religião, doutrinas, teorias de vida – isso são revisões de quem viveu. E me é, neste fim de tempo, como que o encontro do destino: contar, rever, deixar, na alegria de, fazendo-o, sentir-me vivo. E estar vivo é ser parte. Ainda. Enquanto.

Tenho, por isso mesmo, tentado estabelecer alguns entendimentos que me sirvam de referenciais e de critérios. Para não morrer com ou de culpas. Refiro-me a erros e a equívocos. O erro é proposital, algo – leve ou grave – que se faz por vontade própria, sabendo não ser certo. O equívoco é fazer o errado pensando seja o certo. E o exemplo mais simples que sempre me dou – tendo-o explicado também aos filhos – está na sinalização do trânsito, no sinal de contramão. Se é proibido trafegar por certa rua, se há sinal claro disso, se eu sei e, mesmo assim, entro na contramão, eis o erro. No entanto, se não sei do impedimento, se me confundi de rua, se dirigi na certeza de estar na direção correta – eis o equívoco. Que, para mim, não passa do erro cometido involuntariamente.

No balanço que já faço da vida, sinto ter cometido equívocos sem fim, certezas que, depois, descobri não serem verdadeiras. Mas – para meu alívio de alma e coração – a contabilidade me acusa pequena soma de erros, aquelas falhas e infrações e contravenções, mesmo morais, cometidas propositalmente, conscientemente. Males, pois, eu sei tê-los cometido por equívocos, essas levianas e imaturas certezas a respeito da vida. Mas – como viver vive-se vivendo – alivio-me espiritualmente ao, no balanço final, avaliar que males propositais, esses foram poucos os que cometi. No entanto, carrego uma dúvida terrível em relação ao seo Passarella, o dono da “bombonière” do Passarella, ao lado do antigo cine Politeama, na Praça José Bonifácio, onde foi a “calçadinha de ouro”.

Foi logo após a II Guerra Mundial. Morávamos, já, na pequenina casa da Rua São José, onde vivemos o luto da trágica morte de minha irmã. O “american way of life” já havia acontecido: meias de nylon, Coca Cola, filmes de Disney, Carmem Miranda hollywoodiana. E o chicletes. Da Adams. Nos filmes, todos mascavam chicletes. E era bom e charmoso mascar chicletes. Em minhas lembranças, esse desejo de chicletes deve ter-me acontecido por volta de 1.947, 1.948. Pois minha irmãzinha já fora atropelada pelo caminhão fatídico, meus pais estavam semi-mortos, a vida se nos tornara uma tristeza imensa. E eu ardia em febre para mascar chicletes. E não tínhamos dinheiro algum para eu poder comprar, na lojinha do seo Passarella, a goma de mascar.

Então, num começo de noite, meu pai me chamou e me deu uma enorme moeda, acho que ainda se dizia ser uma pataca, ou meia pataca. Ele apenas me falou: “Entregue a moeda ao Passarella e peça o chicletes. Qualquer coisa que ele disser, mande-o conversar comigo.” Não sei o quê ou qual era o segredo, o porquê da recomendação. Mas sei – e não me esqueci nunca mais – que, com o coração aos saltos, corri até a “bombonière”, pedi o chicletes, entreguei a moeda e saí correndo pelo jardim, correndo desesperadamente, como se alguém me pudesse roubar o chicletes ou, então, como se a moeda não correspondesse ao preço da goma de mascar e seo Passarella me pedisse que lhe devolvesse a caixinha mágica.

Ele me chamava, da porta de seu botequim: “Menino, menino, volte aqui.” Nunca eu soube se ele queria dar-me o troco da pataca que eu lhe dera, se a moeda de meu pai fôra insuficiente para pagar o chicletes de meu sonho. Até hoje, sinto ressaibos e sabores de erro na compra de meu primeiro chicletes. E se enganei seo Passarella? Não sei, nunca mais irei saber. Mas é uma culpa que me permaneceu na consciência, a impressão de ter feito um mal irreparável.

Seo Passarella nunca me cobrou nada, nos dias que se passaram. Ele me via, brincava, nada comentou. Mas a sensação de culpa permaneceu. Com o chicletes, sinto ter perdido a inocência. Mais ainda: descobri a minha capacidade humana de poder fazer o mal.

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