O negro Carlinhos, filho da alma

Quando ouço falar de mãe-solteira, lembro-me de Joana (nome fictício para preservar-lhe a identidade), a negra. Era uma bela mulher, nascida e vivida num pequeno sítio dos arredores da cidade, desses que alguns estudiosos dizem ter sido um dos quilombos piracicabanos.

Joana era bela mulher, em sua negritude passional e meiga, estigma de uma moça que, no Brasil, soube aprender a equilibrar-se entre a vida e a morte. Ainda que  belíssima mulher, Joana  precisou, para viver, morrer no corpo, na alma. Ela era um corpo, nunca foi uma pessoa.

O pai de Joana, quando ela atingiu a maioridade, fê-la sair do sítio para vir à cidade, ganhar a vida. Inocente, pura, simples, ingênua, ela chegou à cidade que começava a crescer,  uma história comum e cansativa, de tanto que se repete, continua a se repetir. E alguém surgiu na vida de Joama, um grande amor. E Joana, a negra, o amou,  e  deu-se de si para o grande amor, e a negra Joana  engravidou. Uma história banal, uma história comum história de milhares de jovenzinhas pobres, inocentes, ingênuas e puras como Joana , tolas como ela.

Eu estava casado há quase dois anos, sem filhos, como se as portas da vida estivessem fechadas para, depois, escancararem-se multiplicadamente. Conhecemos Joana , minha mulher e eu, naqueles tempos, início de casados. Ela  precisava de um emprego e tinha um filho, um garotinho com pouco mais de uma semana de vida, Carlinhos (nome fictício também para preservar-lhe a identidade.

Ah! Nunca houve criança tão linda como Carlinhos, um anjinho negro de coxas gorduchas, de imensas bochechas e de olhos profundos como nunca vi outros iguais. Ele tinha pouco mais de sete dias, e estava belo e sorridente nos braços de Joana , quando ela bateu à porta de nosso pequenino apartamento, lar de recém-casados ainda sem filhos. Foi como a Anunciação do Senhor a Maria: lá estava o que não fôra gerado pela carne, mas pelo espírito. Nós queríamos tanto um filho e, de repente, ele nos aparecia à porta, nos braços de Joana, a negra, a mãe solteira. Era Carlinhos, o meu primeiro filho, talvez um dos mais amados de todos os meus filhos.   Gorducho, as dobras de suas perninhas eram tão côncavas que o talco e as pomadas deixavam frisos brancos entre as suas saliências, lembro-me disso, nunca me esquecerei. Carlinhos parecia  bolinha de carne redonda, gorduchinho, um risonho bebê gorducho que dormia em minha cama, entre o meu corpo e o de minha jovem mulher.

A nosa cama foi o seu berço, até que pude comprar-lhe um outro, apenas seu. Joana – que havíamos poupado de trabalhar –  o amamentava, mas ele era o meu filho, filho do meu coração, adotado na alma. E eu e minha mulher saíamos com ele pelas ruas a passear, e as pessoas nos olhavam escandalizadas, censoras, vendo-nos com um filho negrinho. Carlinhos era nosso filho, o primeiro filho, filho da alma, não da carne. E, então, quando ele estava prestes a completar dois anos de vida, Joana  levou-o embora, no silêncio da noite. Acordei pela manhã e não o vi. Nem ouvi a sua risada gorda. Joana se fora com o menino,  envergonhada, pobrezinha, de estar grávida de um outro homem, mãe solteira pela segunda vez. Foi, talvez, a primeira sensação verdadeira que eu tive da morte.

Sem Carlinhos, meu filho negrinho, a morte descia sobre mim. Procurei-o, fui em busca dele ao longo de todos os espaços, não o encontrei. Foi a morte da alma, e eu chorei, durante muitas noites chorei. Mas vieram-me os filhos da carne, um após outro: Patrícia, Carol, Marcelo, Rachel, Carina –  e, a pouco a pouco, a imagem de Carlinhos se esfumaçou. Ficava a lembrança, mas a imagem se ia desfigurando ao longo do tempo. Carlinhos era apenas uma saudade, a criança gorducha e risonha que me fôra roubada, no cruel direito que têm as mães carnais sobre os pais espirituais. Joana era mãe de Waldomiro segundo a carne, mas eu era o seu pai segundo o espírito. Doeu. Machucou.

E o tempo se foi, foram-se 17 anos. Nunca mais vi Carlinhos, mas ele estava em mim, seu corpo gorducho em meu leito conjugal. Então, 17 anos depois, a campainha de minha casa tocou. Eu não atendia, àquele tempo, a  campainhas, nem atelefones que tocavam. Mas atendi àquela campainha, nem sei porque atendi àquele toque. Era um jovem negro, um jovem  enorme, atlético, musculoso, sorridente mas tímido.  Meu coração bateu tão forte que tive medo de que me explodisse na garganta, uma intuição que me sufocava.  Era Carlinhos, 17 anos depois. E ele me convidava a ser seu padrinho de Crisma: “Doutor, minha mãe sempre me contou que foi o senhor meu verdadeiro pai…”

Carlinhos voltara para mim, meu filho negro. Tive a alegria e a felicidade de poder encaminhá-lo na vida, ajudando-o a realizar um sonho: dei-lhe o violão com que, depois, ele se tornou professor de música. E se casou e teve filhos.  Por isso, quando ouço falar de mãe-solteira, lembro de Joana, a negra Joana , que me deu meu primeiro filho, o adotivo na alma. E abençôo as mães solteiras, todas elas, simplesmente mães …

1 comentário

  1. Dirceu Tarantini em 04/04/2014 às 12:10

    gente eu vou ficar brabo com o Cecilio,depois que eu descobri a provincia,eu fico horasem sua leitura,cada materia,uma mais interessante que a outra,todas ótimas,lindas historias ou estorias,tocam a nossa sensibilidade,nos atualizam nos fatos atuaise do pasado,parabens velho amigo,sou seu fã

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