O sal da terra

Viver vive-se vivendo (7)

Foto: Crispim/Olhares

Ao final de 2004, vi-me – levado, talvez, por recordações – ao pé de uma serra por cujas trilhas eu costumava correr. Era quase tudo virgem. Até eu. Pelo menos, na alma. Os músculos da juventude conduziam-me para o alto e, depois, levavam-me serra abaixo. E, então, o suor do corpo se renovava nas águas de um lago plácido. Parecia-me de águas negras, tais as sombras de árvores imensas que o protegiam. Se existem santuários intocados, aquele era um deles.

E revi lugar, tempo, uma história: aquela paisagem toda, o lago que resistiu o tempo, parecendo ainda intocado, virgem. A diferença estava em mim, que o alcancei por uma estrada pavimentada, de automóvel. Não havia mais trilhas por entre árvores, nos montes. E, mesmo que com áreas intocadas, o lugar perdera o mistério. Entendi, então, que a virgindade das coisas e das pessoas está na alma, no mais fundo delas. Pensando entender, senti-me, então, virgem novamente. No mesmo lugar.

O tempo é pouco. A luta, agora, é para não ceder ao cansaço, que parece infinito, definitivo. Só que o cansaço é outro: das inutilidades, do que se tornou desnecessário, tolo, fútil. Pois, se o tempo é curto, há que se dar fim a papéis. Eles não têm mais sentido. As horas passam a ser verdadeiras. Amanhã, é distante demais. Esperar a noite, também. A verdade começa a se instalar quando o conflito se define, quando há rendições ou, então, quando se chega ao grande acordo, o armistício após a guerra tanta, no descanso de um sossego pelo menos provisório. Corpo e alma, assim, vão deixando de brigar. E tornam-se plenos, um milagre de espantar: a alma é corpo, corpo é alma. E nenhum é o outro. Nada mais, então, se precisa entender. Acho que nunca foi preciso entender. Eu é que não sabia disso.

Começo a acreditar seja o mundo o imenso palco onde somos todos artistas, todos nós, cada qual em seu momento. A questão estaria na escolha: ou o superficial ou o intenso. A arte é intensidade. Logo, se a vida for arte, terá que ser intensa. Nada existe na apatia, no acovardamento, na razão pragmática. A vida é intensidade na sua arte múltipla, na explosão do movimento: o vento que, quanto mais intenso, mais esculpe as coisas; as fêmeas no cio, os machos seduzidos; plantas rompendo solos; flores surgindo de hímens rasgados dos galhos absortos; a vida acontecendo na espontaneidade de forças incontroláveis. A vida não tem controle. Tentar controlá-la é perder por antecipação. Tentando controlar ao incontrolável, é onde e quando morre sucumbe o ser humano.

Retornei, pois, ao lugar. Retornei porque tudo retorna, o homem, as coisas, a vida. A lição estava lá para ser aprendida, apreendida, entendida: tudo aquilo em que acreditei, tudo aquilo que amei, o que me deslumbrou – a carne e o espírito, alma e corpo, a minha alegria franciscana diante de um estar entre, de estar com, de estar em e de não estar – tudo existe. Eu é que tinha brigado comigo permitindo deixasse de existir o que existia, até eu próprio, aquele de antes. Não consegui. E sobrevivi a mim mesmo.

O coração não se engana. Levado por ele, reencontrei o sal da terra. Está no silêncio, entre pastores, mendigos, párias, ciganos, cães soltos pelas ruas, prostitutas verdadeiras à espera de enfermos da alma; o sal da terra está no pólen, nas marés, na dor, na tristeza, na saudade sem fim, no amor que se não tem e no amor que se busca, está na busca, na busca eterna. O segredo é não encontrar nunca. Portanto, não posso encontrar. Mas, apenas, conviver com o esplendor de que sou parte. E deixar acontecer a intensidade. E, então, no resto de tempo que sobra, ficar contando da deslumbrante descoberta do sal da vida nas pequenas coisas. O sabor é do cotidiano. É esse o milagre, pois, que preciso cantar, contar.

Naquela rua São José, tudo aconteceu, antecipando o que haveria de vir. Sou capaz, ainda agora, de descrever aqueles espaço: a garaparia de dona Antonietta na esquina, a Farmácia Normal, o Hotel Lago, a casinha de meu pai, a Livraria de João Fonseca, o Escritório de João Cardinalli, dona Santa Michelin e seus filhos, dona Maria da Pfaff (Mattiazzo), o Garoto Chic, o escritório de Cícero Certain Ferraz, o armazém de Jorge Maluf, a Tipografia Aloisi, o Bar Municipal, tudo numa calçada só. O mundo, com toda sua pluralidade. Em minha aldeia. (Ilustração: Araken Martins.)

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