Os 80 anos de idade de Tiquinho, o homem bom

Viver vive-se vivendo (31)

Coisas da memória são registros que passeiam e voejam em nebulosas. Tenho certeza de ter visto o dia de meu nascimento, névoas que me ficam de um quarto povoado de mulheres, de uma porta que, abrindo-se para uma sala também feita de névoas, acolhia um grupo de homens, amigos de meu pai, que fumavam charutos. Não sei se a névoa é da fumaça de charutos, se de meus olhos de recém-nascido. Foi na manhã de domingo, véspera de São João, 1940. E o local, onde está o Banco Sudameris.

Volto a escrever sobre essas impressões, névoas, lembranças pelo privilégio de poder estar entre os que celebram os 80 anos de Tiquinho, o Haldumont Nobre Ferraz, adorável filho de Seo Tico da Farmácia, meu amigo e companheiro de toda uma vida. Assusto-me duplamente: por Tiquinho estar completando 80 anos, uma vida linda, e de eu poder cumprimentá-lo na celebração de uma história. Pois posso dizer que conheço Tiquinho desde aquele dia em que nasci, meus olhos contemplando figuras, névoas, aquela casa na esquina das ruas Boa Morte e Moraes Barros. Tiquinho morava bem ao lado, na rua Boa Morte, à lateral da Catedral de Santo Antônio, antiga Igreja Matriz, vizinho do prédio da Força e Luz, ainda conservado e imponente. Tiquinho, filho de Seo Tico da Farmácia, meu vizinho, meu amigo, companheiro.

Faço as contas: Tiquinho já tinha 13 anos de idade quando eu nasci. Ele viu o inicio e o explodir da Guerra deflagrada por Hitler. Mas viu e conheceu Jorge Pacheco e Chaves, Jorge Coury, Samuel de Castro Neves e Luiz Dias Gonzaga, na sua infância de bonde elétrico passando à frente de sua casa, de comprar sorvete no bar do meu pai, o Café Imperial, feito pelas mãos de Seo Pink. Tiquinho comprou balas na bombonnière do Passarela, conheceu a Nova Aurora onde Augusta Maygton, como garçonette, deslumbrava por sua beleza que inspirava pecados. Tiquinho foi guardião da apaixonada luta de João Chiarini por Piracicaba, um cultor da história oral e escrita. E fez, desse zelo, um compromisso de vida.

O meu Tiquinho – pois Tiquinho é amado por muitos e lembrado por todos, cada qual em sua recordação – sempre foi doce e terno, mas com alma revolucionária, de uma consciência cristã transformadora. O Bairro Alto e o Piracicamirim devem, a Tiquinho, a liderança e o pioneirismo no serviço social de leigos e cidadãos civis. Tiquinho era movido pela fé católica, coroinha e ajudante de Monsenhor Martinho Salgot, soldado do catolicismo, cristão convicto. Há, no Piracicamirim – onde se criou o jardim Ipanema – uma estrebaria de um terreno baldio, que pertencia à Dalila Botelho Toledo, onde existia a “capela do Rolador”, capelinha de bairro rural onde Tiquinho ia ajudar Monsenhor Martinho na celebração de missas. Até hoje, não perdôo a insensibilidade de João Chaddad – artista e cidadão sensível que se endureceu no pragmatismo da política – quando o adverti para preservar, como secretário de obras de então, a “santa cruz do Rolador”, acho que a última capelinha de beira de estrada a estar em área urbana.

Não direi de uma biografia, de obras de Tiquinho, atuante até na política, apaixonado pela educação e cultura. Pois não conseguirei dizer tudo de Tiquinho, de seu trabalho, de sua doação, de sua generosidade, de sua luta em defesa do povo e das instituições, pois isso seria escrever um romance. Neste meu fundo do baú, quero, apenas, dizer-lhe de minha gratidão por poder tê-lo como amigo e irmão mais velho nessa nossa já tão longa jornada. Tiquinho fez, por Piracicaba, mais do que Piracicaba sabe, nesses tempos confusos e tristes em que a corrupção parece sepultar as boas e belas obras. Os 80 anos de Tiquinho, do Haldumont Nobre Ferraz, são uma celebração à vida honrada, decente, digna e generosa. De Tiquinho, ficará a mais bela herança que o ser humano pode deixar: a do homem bom.

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