Paixões arrebatadoras

Esse texto foi publicado em fevereiro de 1989 no semanário impresso A Província. Recuperamos para destacar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

 Nasci homem para imensas, explosivas, complicadas, alucinantes paixões de Carnaval. E me complico. São paixões de toda natureza, as mais conflitantes entre si: um grande amor, o livro que começo a escrever, um torturante retiro espiritual. Carnaval é meu tempo de paixão, não sei que estigma é esse que me acompanha. Acho que o meu maior erro, quando me casei, foi o de ter sido honesto como um amigo meu de Rio Claro que, antes de se casar, propôs para a mulher dele, e ela aceitou: ‘querida, serei seu por toda a vida, 361 dias por ano, em cada ano da vida. Só quero o direito de ter quatro dias por ano de Carnaval.” E eles foram felizes pelo resto da vida. 

Mas eu me complico, pois não combinei esse acordo que revela a profunda sabedoria do meu amigo. Neste Carnaval, irei fugir, pois não quero complicações e também porque estou vivendo a paixão do Zé Raimundo, personagem de um livro que me arrebata há mais de 10 anos. Confesso, porém, que fico em dúvida, quase me vendo como tolo, pois sei que, se fosse participar do Carnaval, eu me apaixonaria por alguém.  

E só dá complicação, desde quando o jovenzinho que fui. Na verdade, a minha primeira paixão de Carnaval foi a Neidona, a negra Neidona, que saía num bloco de negros pelas ruas da Neidona, enlouqueci. Era uma estátua de carne gingando, rebolando-se, alucinando as pessoas — como uma deusa de ébano que eu,  certamente plagiando alguém — transformei em poesia. Por uns três ou quatro Carnavais, minha paixão foi a Neidona, a velha Neidona que anda por aí esquecida, abandonada, vivendo a sua velhice de desolação em um barraco da periferia.  

Depois, foi a Shirley, em Cosmópolis, na casa do meu tio João Herrmann Pai, quando o Joãozinho Herrmann, o neto, me complicou um amor feito de doçuras e de enlevos, amor dos 15 anos. Amei a Shirley num Carnaval domingueiro, de matinê, quando deixamos o clube dos operários e fomos em direção à represa, um amor com sol, a bela da tarde, com passarinhos cantando nas árvores. Acho que fiquei doente de tanto amor, Paixão de Carnaval me enlouquece.  

E enlouqueci em Bauru, a doce Maria, que, de tão pálida, esguia, coitadinha, era chamada pelos moços de Maria Palito. E, nos Carnavais de Bauru, a paixão de cada ano, uma complicação em cada Carnaval. Então, quase me arrebentei, arrebentando vidas: num Carnaval, apaixonei-me pela noiva de um amigo. Ela se fomos para um amor sem qualquer sensação de culpa, eu querendo que o meu amigo, e noivo dela, morresse.  

Ela tinha imensos olhos verdes, e somente o casamento deles nos afastou. Tenho até medo de lembrar. E aconteceu Eliana, ah Eliana!, por quem renunciei a cargos esplendorosos de uma juventude privilegiada. Eliana de quem me separei, dois anos depois, quando um avião partiu do céu cinzento de Congonhas. E eu e ela ficamos chorando numa despedida que parecia nos matar de tanta dor. Pobre Eliana, que me procurou, muitos anos depois, sonhando começar tudo de novo. Mas envelhecida e alcoolizada. A pele, que fora sedosa como pêssego, enrugada e sofrida, com um filho e separada do marido. 

Encontramo-nos, mais uma vez, numa redação de jornal, como da primeira vez. E foi a última. Naquela noite, a paixão de Carnaval Morreu definitivamente. Ficaram lembranças. Depois… bem, depois é depois. O homem feito de paixões continua vivo. Por isso, esse homem tem medo de Carnaval. É a vida que palpita, são máscaras que caem. Carnaval é o que existe de mais autêntico na vida das pessoas, pelo menos dentro de mim. 

O ser humano é caótico, anárquico, sem hierarquia. Não foi à toa que dei o nome de Bakhunin, o anarquista, a meu cachorro. Impedido de ser anárquico, diante do tempo que chega, diante da vida que implantou raízes,o anárquico é o meu cão, o Baco, Bakhunin. Alguém tem que viver essa anarquia, razão de vida. Neste Carnaval, fico com Zé Raimundo, romance que estou escrevendo. Não quero complicações. Ou sou tolo e não estou percebendo que, pelo que tem a dizer, o Zé Raimundo seja a minha última e definitiva complicação.

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