Pés descalços, peitos nus…

 

Foto: Marcelo Sabino/Olhares

Viver vive-se vivendo (13)

Ainda no final do Século XX, um episódio fortaleceu-me a convicção de, ao artista e ao escritor, nada mais restar senão fazer registros, contar. É o papel dos que viveram muito. Não há mais necessidade de ação, nem podem exercê-la. O tempo é de ver, refletir, narrar. Até mesmo como simples anotação para os curiosos do futuro.

Naquele episódio, a expressão da criança ficou-me gravada nos olhos. O garoto viera de São Paulo, visitava- nos, eu morava num lugar distante, bucólico, pequena chácara. De repente, assustado e excitado, o menino gritava pela mãe, querendo ela visse como que um milagre acontecendo: galinhas ciscavam, passeavam com suas ninhadas de pintinhos. E o garoto dizia, deslumbrado: “Venha ver a Knorr…”, confundindo marcas. Para ele, as galinhas de verdade eram as do caldo da empresa dos EUA, galinhas da televisão que, na chácara, ele descobrira existirem ao vivo. E, em seguida, mas com medo como se visse um monstro, o mesmo garoto gritava pelo pai, pedindo socorro e ajuda: “É um boi com barba!” O animal feio, que lhe lembrava figuras horrendas de histórias também de televisão, era apenas um bode velho que passeava pelos descampados.

O menino urbano nunca vira animais ou bichos além daqueles que apareciam em jogos eletrônicos ou na televisão. Não sei o que, amanhã, as nossas crianças haverão de contar às próximas gerações. Mas, com toda certeza, há uma realidade de que não podemos mais fugir: roubamos, aos pequenos, o direito de terem infância, de descobrirem o mundo com olhos de deslumbramento, de se sentirem partícipes desse milagre da vida. Demos-lhes roupas em excessos, calçados demais; os tênis e os jeans roubaram-lhes a liberdade de sair pelo mundo como os potros indomados, descobrindo espaços e respirando ares limpos.

Nas décadas de 1940 e 1950 – e parece-me incrível dizer que sejam de um século já extinto – meninos andavam descalços, os peitos nus. Éramos um povo pobre, mais pobre do que hoje. Mas, pelo menos em Piracicaba, os miseráveis eram escassos. A pobreza unia as famílias. Roupas passavam de irmãos que cresciam para irmãos que iam crescendo. Sapatos – um único par para cada criança – transmitiam-se, também, como herança, do irmão mais velho para o mais moço, conforme fossem, os pés, aumentando de tamanho. Ou, então, eram os vizinhos que faziam trocas, que davam sapatos velhos, mas ainda usáveis, de presente.

E a grande figura, importante como um médico, era o sapateiro, um mágico. Pois era ele quem fazia a meia-sola, a sola inteira, quem costurava e remendava sapatos que pareciam tesouros familiares.

Usávamos calções e macacões. Feitos com pano de sacas de trigo. Na minha rua dos oito anos, a São José – entre a praça José Bonifácio e a Alferes José Caetano – era o seo Jorge Maluf, dono do armazém, quem abastecia as famílias com sacas vazias de trigo. Delas, faziam-se calções e macacões. Ah! os macacões: compridos até os pés, ou pula-brejo, eram abotoados à altura do peito a partir de duas tiras. Para fazer xixi, tinha-se que desabotoá-los, descendo até a cintura. Mas isso era simples: pois as crianças – sem grandes noções de higiene e de bens públicos – faziam xixi em qualquer canto, sem malícia e sem vergonha. Eram azuis os calções e macacões, de um azul marinho que ia desbotando com o tempo, a cor que saca de trigo ia adquirindo na tintura dos grandes tachos nos quintais. A água fervendo, o pano para tingir, alguém mexendo com uma pá – daquela poção mágica, sairiam os macacões e os calções, nossa roupa do dia a dia. .

Que criança, meu Deus, sabe, neste início de século XXI, o que é pisar num prego enferrujado, o medo do tétano, o farmacêutico fazendo o curativo? Ou pisar num vidro de quintal, jogando bola em chão de terra, a bola feita de meias velhas? E procurar ferradura de cavalos, trevos de quatro folhas, que “davam sorte”?

Mais do que os macacões, os calções eram símbolo e sinal de uma liberdade por assim dizer absoluta. A rua era nossa, dos meninos. E, assim, éramos meninos de rua, felizes pela liberdade e pela segurança, a certeza de que cada porta iria se abrir como se fosse a de nossa própria casa. Uma criança, como se fôssemos uma grande tribo, era responsabilidade de todos. E, por isso, era como se o mundo fosse feito para crianças.

Não sei se, agora, as mães mais jovens sabem o que seja o doce conhecido como “pé de moleque”, feito com amendoins, encaroçado, como se tivesse calombos. Eram assim os pés dos meninos: marcados de verrugas, de machucaduras, de calos, de arranhões, de ferimentos, de espinhos, de panos amarrados para “tapar feridas.” Meninos andavam de peitos nus, pisando na terra com os pés descalços. Meninos trupicavam. Tinham os dedões esfolados.

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