“Quadrar jardim” e preconceito

Viver vive-se vivendo (6)

Foto: Miriam Maria dos Santos de Salazar/Olhares

Quem vê, nestes primeiros anos do século XXI, o centro de Piracicaba não conseguirá avaliar a beleza de um convívio social que poderia estar em telas de Monet. Não me importa sejam tempos e lugares que não existem mais, levados pelas transformações e mudanças. Importa-me saber que existiram e fincaram raízes. Como a árvore da vida.

Quando escrevi sobre a maçã verde, a emoção, o quase susto em poder mordê-la, não pensei em dizer de sabores de infância, de sabor de meninice, de cheiros que nos construíram também espiritualmente, que estes são tesouros para reflexões mais profundas. A maçã argentina foi como que a sensação de pertencer a um mundo maior, de ter saído dos limites da terra, de voar e de viajar. E, também a Coca Cola.

Coca Cola, sabia-se dela através dos filmes. Experimentar um gole de Coca era sonho. Nossas delícias eram as gengibirras e etubaínas, do Orlando e dos Andrade. Foi, ainda, meu tio Toninho – sempre ele, qual anjo da guarda – quem me deu a primeira Coca Cola. Tomei num dos bares da moda, um dos mais chiques da época: a “Nova Aurora”. Ficava em frente da casa onde passáramos a morar , na rua São José, onde apenas sobrou a garagem subterrânea do Comurba. A “Nova Aurora” era a esquina da São José com a rua Boa Morte, onde está o Bradesco. E nunca me esqueci do primeiro gole da “l´acqua nera do imperialismo”, como a chamavam tanto fascistas quanto comunistas. Foi um choque elétrico, como que uma explosão interior, acompanhados, põem, de sensação de vida nova.

Na Nova Aurora, reunia-se a juventude refinada de Piracicaba nos meados dos anos 40. E onde ia-se beber uma outra novidade, apresentada como delícia dos deuses: “frapê de coco”,que se escrevia “frappé”. A cidade, toda feita de preconceitos, estava naquele quadrilátero central: da Matriz de Santo Antônio até o Teatro Santo Estêvão, o jardim remodelado pelo Prefeito Jorge Pacheco e Chaves.

A “classe operária” e os mais humildes “quadravam jardim”: as moças andavam em bandos no sentido horário;os rapazes, no sentido anti-horário, olhando-se, “flertando”. Os mais tímidos ficavam parados, vendo a vida passar. E da atual calçada do Itaú ao Bradesco ficava a “calçadinha de ouro”, onde faziam o “footing” as moças da classe média alta e das elites. Iam e vinham, , da “Bombonière”do Passarella até o Cine Broadway, passando pela Nova Aurora.

É doloroso lembrar, mas Piracicaba “cedia” parte do centro da cidade aos negros, que pareciam confinados ao quadrilátero formado pelas ruas São José, Governador Pedro de Toledo, Moraes Barros e a calçada fronteiriça à praça. .Era a “quadra dos negros”, da mesma forma como a “calçadinha de ouro” era propriedade intocável dos brancos ricos, bonitos e famosos, esses mesmos que freqüentavam o Cine Broadway, enquanto o Cine São José acolhia os mais pobrezinhos, o povo humildes.

Era, sim, uma claríssima definição de preconceito social e racial, uma discriminação contra pobres e, racialmente, não apenas contra negros, mas também em relação a italianos, judeus, sírios, espanhóis, libaneses, alemães, japoneses. Não é à-toa, pois, sejam centenárias sociedades como a Italiana, a Sírio-Libanesa, a Espanhola e, também, a quase centenária Sociedade 13 de Maio. Foram espaços de socorro mútuo.

Meus olhos de menino viram aquelas ruas, meu corpo de criança viveu aqueles tempos, minha alma absorveu todo aquele universo fantástico que era possível ser vivido em tão poucos quarteirões, em tão poucas quadras. Na rua São José, entre o jardim central e a rua Alferes, o mundo passava, passeava.

2 comentários

  1. Linneu Stipp em 15/02/2013 às 23:00

    Negadinha do A Provincia

    Bom a gente ser "veio", quando vocês resolvem massacrar os nossos corações, a gente sofre, mas é bom lembrar-se do passado, não é nada bom a "agenda" que alguem de lá de cima apresenta, pedindo que agende a volta…

    Eu me recuso terminantemente, eles que fiquem esperando, não dou bola…

    Mas voltando à realidade, os classe média nas mais varias divisões impostas pelos economistas, divertiamos aos sabados e domingos, dando voltas e mais voltas na praça, os homens em um sentido, as mulheres em outro sentido, ninguem sabia como começava nem como terminava…

    Haviam os olhares furtivos, vez por outra haviam os abandonos para um namoro…

    Mas os preconceituosos impunham as separações, as pessoas de cor, ficavam na rua Governador, trecho entre as Ruas São José e Moraes Barros

    E as pessoas abonadas? Bem essas passeavam ente o Politeama e o Broadway…

    Os homens, geralmente estudantes ficavam de costas para a praça, olhando o desfile das beldades moçoilas casamenteiras…

    Mas a vingança será maligna como dizia o Bento Carneiro, Vampiro Brasileiro…

    As moçoilas só queriam casar com ricaços… né?

    Eu me lembro muito bem de umas duas que envelheceram, vinham desfilar, nos domingos à noite, na Barão de Itapetininga trecho entre a Praça da Republica e a Praça Ramos de Azevedo…

    Nesse trecho ficavam os representantes das comunidades arabes, estacionavam seus Cadilacs, Dodges etc, e encostados nos carros ficavam conversando num linguajar extranho, olhando as "veia" desfilar…

    Juro em cruz que a estoria é verdadeira…

    Da Capital da Provincia, quinze de fevereiro do ano de fevereiro de dois mil e treze, era cristã, ou E,`, V .´,

  2. Lavínia de Souza em 19/08/2013 às 11:26

    Cecilio, bom dia!
    Também me lembro do quadrar jardim, fui algumas vezes com minhas tias! Muito lindo esse seu artigo!

    Lavínia de Souza, filha do seu amigo o Joaquim Caxambu.

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