Cegos, surdos e mudos

Os Três Macacos Santos, incrustados num templo japonês – “não vejo, não falo, não ouço” – têm esbanjado lições de sabedoria também no mundo ocidental. O simbolismo original é marcante: “não ver, não falar e não ouvir o mal”. No entanto, muitas outras interpretações vão-lhes sendo dadas, a ponto, até mesmo, de esses não falar, não ver, não ouvir se tornarem, também, significantes de alienação, de indiferença e, também, de acumpliciamento.

Ora, o que há mais conveniente do que fingir não ver e não ouvir e, portanto, não falar? Lembro-me de que meu pai – com os filhos adultos e nas nossos agitados almoços familiares – permanecia mudo, como se nada ouvisse ou visse. Perguntei-lhe, um dia, a razão de seu mutismo, algo diferente do silêncio. Ele apenas me respondeu, com suave ironia: “Falar o quê, se vocês já sabem tudo?” Na verdade, ele sabia que não sabia. E nós, os filhos, não sabíamos que não sabíamos. No idoso homem, a sabedoria; nos jovens filhos, a arrogância.

Já tenho feito isso com filhos e netos. Finjo não ver e não ouvir. E, então, não falo. Costumo dizer-lhes estar, eu, ficando caduco. Eles não entendem e pensam que falo de demência, de velho demente, sei lá se com Alzheimer. Na verdade, sinto estar ficando caduco no sentido de tempo vencido, como remédios, alimentos que, após o prazo de validade, caducam. Pois já não sei mais o que ando fazendo por aqui. Luto, hoje, para não perder a raiz, pois folhas e galhos vão sendo arrancados por temporais, tsunamis e furacões. A árvore perde folhas e flores, que se renovam. Mas, se perder a raiz, morre. E é esse o meu medo: a raiz são os princípios; digamos que galhos e flores e frutos são valores. A mudança destes somente será benéfica e aceitável se os princípios, as raízes, mantiverem-se vivos.

Os Três Macacos da Sabedoria definem – em nosso mundo ocidental – muito menos uma filosofia do bem e muito mais um estado coletivo de torpor e hipnose: as pessoas não vêem, não ouvem e não falam, mas o motivo está na impotência racional e na aridez espiritual. Não se fala mais em pessoa, em seres humanos, mas em contribuintes e consumidores. Essa chamada “nova classe média” revela apenas um novo estágio de capacidade de consumo, sem mostrar, porém, as qualidade morais, espirituais, cívicas que compõem o núcleo do que seria uma consciência nacional. Se dividirmos as classes apenas por sua capacidade de consumir, nada estaremos mudando. Pelo contrário, apenas daremos mais forças e manteremos o predomínio de minorias mais privilegiadas e economicamentre mais poderosas. Se, como ensinou Marx, a “cultura dominante é a cultura da classe dominante”, qual é essa classe dominante? A chamada classe média não é. Pois,segundo o critério consumista, está esmagada pela minoria de altíssimo poder aquisitivo.

Cegos, surdos, mudos – ora enxergamos e não vemos, ora olhamos e não enxergamos; não ouvimos o clamor das ruas e das consciências lúcidas. E, desgraçadamente, não temos o que falar. O sábio chinês esqueceu-se apenas de contar que, diante do mal, os macacos precisam, sim, ver, ouvir e falar. E falar gritando. Há indícios de um despertar.

Tomara isso aconteça rápido. Pois – desde antes da descoberta do Novo Mundo e da primeira globalização através dos mares – o Oriente já olhava temerosamente para o então desconhecido Ocidente, a que chamavam de “lugar dos mortos”. Cegos, surdos e mudos também morrem.

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