D. Aniger e o cão de guarda.

Pouco saio de meu canto, pouquíssimo tenho saído. É o recolhimento para descortinar melhor e, então, ver. E enxergar. No meio da poeira, nada se vê, pouco se enxerga. De quando em quando – e por necessário – saio. Então, fico em dúvida se acredito em destino, se nas coincidências significativas reveladas por Jung, se em proteções especiais. Pois, quando saio, minha passagem obrigatório é por uma rua com o nome de Aníger Francisco Maria Melilo, o segundo bispo de Piracicaba, meu pai espiritual. Mais do que um despertar de lembranças, essa rua se me torna também como que uma advertência. A mesma que, diariamente, eu me proponho ao colocar, num espaço caseiro de passagem, a fotografia daquele homem.

No auge da ditadura militar, quando fui processado pela Justiça Militar – nos meus poucos e verdes 25 anos – alguns testemunhos inesperados me salvaram da sanha dos militares e dos tiranetes provincianos. Eu mal deixara a militância comunista, proclamava-me ainda “ateu, graças a Deus”, ridicularizava católicos e a Igreja Católica, acreditava na luta de classes. A terra se me abriu sob os pés quando três homens, por primeiro, saíram em minha defesa, com depoimentos pessoais que me espantaram: Leopoldo Dedini, apesar de minhas lutas em favor de um trabalhismo infantil; Tenente Pedro Corlatti, um militar que fora meu professor de Educação Física nos cursos ginasiais e científicos. E Dom Aníger Melilo, que eu nunca conhecera, mesmo atrevendo-me a tachá-lo de “conservador e papa-hóstia”.

Com D.Aníger, começou a minha vida espiritual, mesmo sem que eu o percebesse, como se algo acima do humano estendesse mantos protetores ou me imantasse. Apenas alguns anos depois daquele 1965, conheci D.Aníger pessoalmente, o homem cujos depoimento e testemunhos, ao lado de um industrial e de um militar, convenceram as feras da selvagem justiça militar. Às feras, D. Aníger apenas dissera que o jornalista – aquele moço de 25 anos – tinha o dever, a obrigação, a missão de protestar e de denunciar. E completou, enviando-me também como que uma advertência: “Ai do cão de guarda que não ladrar!” Jornalistas são cães de guarda da sociedade. Se não o forem, serão apenas apenas bichinhos de estimação, animaizinhos domésticos ou de pelúcia.

Doutra feita, já me honrando com sua amizade paternal, D.Aníger me advertiu, quando a fúria da batalha parecia enlouquecer-me: “Uma gota de mel atrai mais moscas do que um barril de vinagre.” Ele me propunha e me orientava para a luta sem ranços, para o uso da espada e do bodoque com firmeza mas com compaixão. Nem sempre o consegui. Ainda hoje, quando me vejo passando pelo tempo, muitas vezes não o consigo. A doçura me escapa muitas vezes. E, no entanto, a capacidade de ladrar não se esgotou. Meu esforço diário – tendo a presença de D.Aníger como uma constante inevitável e fatal em minha vida – é, pois, o de encontrar a doçura na espada. Mas, alegre, como que lhe faço uma prestação de contas: ainda consigo ladrar.

Essas considerações eu as faço com endereço certo. Não existe um direito de roubar, de mentir, de trapacear, especialmente nos negócios públicos. E, no entanto, há um dever, uma obrigação, uma responsabilidade, uma ação social de um cão de guarda: a de ladrar. Um dia, a sociedade brasileira – e, portanto, também a piracicabana – entenderá a diferença entre cães de guarda e bichinhos de estimação. Ou de pelúcia.

Por enquanto e ainda, a voz doce de D.Aníger me anima: “Ai do cão de guarda que não ladrar.”

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