Quando se profaniza o sagrado.

Quando os povoadores subiram o rio, as canoas ultrapassaram as ondas, as ondinhas, fizeram a curva no lugar onde Nossa Senhora deixaria a povoação, detiveram-se diante do Salto. Maravilharam-se. E, como ancestralmente o ser humano faz quando se encanta, Antônio Corrêa Barbosa percebeu o “espaço sagrado” e interrompeu a viagem: “É aqui.” Lá estava, ele, pronto para dar início à povoação de um lugar que já existia.

Quando as pessoas constroem suas casas, elas procuram e escolhem um lugar que lhes parece, de alguma maneira, especial: “É aqui.” Trata-se do “espaço sagrado” que se torna ainda mais sacralizado quando se constroem as edificações, quando se estabelecem os limites. É quando se determina o que faz parte do profano, o que faz parte do sagrado. Isso é tão ancestral que até as tribos indígenas conseguem identificar o profano e o sagrado. As cidades são, também, assim. Como a casa das pessoas.

As mudanças que se fazem em Piracicaba tendem, quase sempre, ao fracasso porque administradores públicos, empreiteiros, urbanistas não se dão conta dos “espaços sagrados”. Eles existem, independentemente das pessoas. Pois não é o homem que os torna sagrados: o homem “descobre” que são sagrados. A Rua do Porto, o Engenho Central, a beira-rio, foram, são e serão “espaços sagrados” de Piracicaba porque, na verdade, “foram encontrados” por nossos ancestrais que, por sua vez, os respeitaram até mesmo inconscientemente ao longo do tempo. Pois, além de espaços sagrados, há, também, um “tempo sagrado”. E isso independe de religiões, já que marcado como ferro em brasa na alma humana.

O “sagrado” da Rua do Porto, do Engenho Central, da Beira-Rio é ancestral, pois são espaços que respondem por toda a mitologia de um povo e de uma cidade: os peixes, como alimento e como trabalho; a água, como bênção; a religiosidade, na festança do Divino; o misticismo, com as lendas que são muitas e que encantam. Lá estão a Noiva do Rio, a Cobra Escondida, a Inhala Seca, Nossa Senhora lamuriando-se por ter sido preterida, o primeiro altar com Santo Antônio, as bênçãos de Rosa de Jesus, a história da paixão de Maria Flor e de Bartolomeu, os banhos fluviais de São João.

Em todas as civilizações, incluindo as primitivas, a percepção do “sagrado” é determinante. Ainda hoje, no chamado Primeiro Mundo, há atenções especiais – da parte de governos, de empreendedores, de investidores – ao que eles sabem ser o mistério do “sagrado” dos povos e das nações. Em Piracicaba, isso está sendo atropelado de maneira até mesmo irresponsável, como se o único que importasse fosse a fome insaciável de empreiteiros por obras pagas pelo município. E a ambição de quem faz parte disso.

O contrário de sagrado é o profano. Quando se profaniza o sagrado, o povo se afasta. Pois sabe que sua alma foi atingida.

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