Reflexões no meu outono (III)
Grandes complexos empresariais, em todo o mundo, vêm contratando filósofos e pensadores como membros de seus conselhos administrativos e consultivos. Ao criarmos uma era de especialidades, fragmentamos o todo, forjando especialistas que entendem apenas de cada parte. Diante da floresta, eles enxergam apenas a árvore. E, no entanto, é preciso ver, entender, compreender a floresta, que é onde vivemos. Daí, a importância dos humanistas tanto nas empresas quanto nas administrações públicas.
Quanto penetramos no tempo, mais acabamos por dar razão aos filósofos do passado, que formaram uma cultura geral, dando início à busca e à necessidade do conhecimento cada vez mais profundo. Platão é um deles. Senão o maior, mas certamente entre os maiores. Para ele, a idéia da cidade ideal deve apoiar-se numa divisão racional do trabalho de forma que a Justiça seja consolidada pela diversidade de funções exercidas. Seriam três classes distintas: a dos artesãos, voltados para a produção de bens materiais; a dos soldados, com a responsabilidade de defender a cidade; a dos guardiães, que zelariam pela observância das leis. Nenhuma classe seria superior à outra, mas todas usufruiriam da felicidade de uma cidade feliz. Mas esta somente seria possível existir se, no comando dela, estivessem os reis-filósofos.
Na aparente simplicidade destas três classes, podemos, ainda hoje, encontrar todas as atividades humanas: os que fazem, os que protegem, os que legislam e governam, os que zelam. É possível entender que nem todos podem fazer tudo. Mas o objetivo final – que é o Bem – pode e deve ser usufruído por todos. Ora, isso começa a acontecer nas empresas mais avançadas, que já entenderam não mais ser possível ficar juntando fragmentos de conhecimento ou enxergando cada árvore em separado. Há a floresta imensa, que precisa ser vista e entendida por inteiro.
Nas cidades, no entanto, isso está longe de acontecer, diante de sistemas políticos que privilegiam ambições pessoais e grupais, interesses nem sempre límpidos e voltados mais para poucos do que para o todo. O poder tem servido não para a busca do Bem comum, mas para os apetites dos que o dividem entre si, compartilhando – como num saque programado – os bens do povo, dos artesãos e dos soldados. Na imagem de Platão, os guardiães, hoje, são usurpadores. E reis-filósofos estão excluídos, pois eles incomodam, têm ideais mais amplos, conhecimentos sólidos e buscam a justiça. Um prefeito, por exemplo, deveria ser um rei-filósofo. Um burocrata, porém, não tem virtudes nem para ser rei, nem para ser filósofo.
Piracicaba sempre foi terra de humanistas. No governo de Paulo de Moraes Barros – nas primeiras duas décadas do século passado – Piracicaba era apresentada como cidade modelo e exemplar para as demais urbes brasileiras. Nas décadas seguintes, esse humanismo permaneceu, com a busca do bem comum. E de tal modo isso aconteceu que – ainda na visão platônica – artesãos, soldados e guardiães trabalhavam conjuntamente, sabendo haver reis filósofos com quem podiam contar. E estes estavam nas assessorias e nos conselhos municipais dos guardiães da terra. E o bem comum e o espírito da cidade estavam marcados, feitos ferro em brasa, no brasão de nossa terra: “Audax in intelecto et in labore” – “audácia na inteligência e no trabalho”.
Ao se perder o caráter do Bem comum, perdeu-se, também, o sentido das coisas e a própria identidade do povo e da cidade. A audácia passou a ser na esperteza, no oportunismo, nos negócios ocultos. A inteligência e o trabalho para o Bem estão adormecidos. A razão é simples: sem reis filósofos, há burocratas demais e humanistas de menos. Dói ver essa degeneração. E causa indignação a quem viveu e conheceu outras realidades.