Reflexões no meu outono (V)
Para muitas pessoas e já por muito tempo, a expressão “fim de linha” – dada a Piracicaba – tem sentido pejorativo ou, até mesmo, fatalístico. No entanto, seu significado verdadeiro é, penso eu, o responsável por esta cidade ter conseguido impor-se e realizar-se com seus próprios recursos, características sólidas, cultura singular.
O “fim de linha” se referia à ferrovia terminar seu trajeto em Piracicaba. Éramos o “fim de linha” da Paulista, da Sorocabana e, antes, da Ituana. E essa foi uma escolha dos piracicabanos, através de seus luminares, que se negaram a conceder licença para que o Salto fosse transformado em usina hidroelétrica. Seríamos um grande entroncamento ferroviário, mas perderíamos um dos presentes mais admiráveis que a natureza nos deu, o esplendor do Salto e das águas do rio. Por outro lado, ficamos à margem, também, da principal rodovia da primeira metade do século XX, a Anhanguera.
Com isso, Piracicaba assumiu o controle de si mesma, na produção e na distribuição de riquezas, fortalecendo-se na cultura, na educação, no pioneirismo nas mais diversas atividades humanas, dado que, de certa forma, ficamos distanciados de outros grandes centros. Os imigrantes – que para cá vieram – chegaram para ficar, não para enriquecer e irem-se embora. Houve uma simbiose de etnias e de culturas. E a visão e o civismo dos Moraes Barros deixaram marcas indeléveis – na seriedade da administração pública, no exemplo de doação à “res publica”. Piracicaba foi considerada cidade exemplar e, hoje, quando se fala em limpeza urbana, seria preciso lembrar que, no início do século XX, a nossa era considerada a cidade mais bem cuidada e limpa do Brasil.
Ser “fim de linha”, portanto, se tornou causa de termos ido em busca e de ter alcançado uma identidade singularíssima. Por isso, até recentemente, o “ser piracicabano” era, antes de mais nada, um estilo de vida, um posicionamento civilizado diante do mundo, dos tempos, dos acontecimentos. Lembremo-nos de que, em 1944, o então prefeito nomeado, dr.Jorge Pacheco Chaves, diante dos estremecimentos causados pela II Guerra Mundial e pela chegada maciça de imigrantes, fez a grande proposta: “´É preciso civilizar Piracicaba”. Ou seja: recivilizar, diante das mudanças e transformações causadas pela guerra.
Tudo, entre nós, caminhou em paz, na sábia administração dos conflitos sociais. Sempre houve disputas políticas sérias e graves, divergências ideológicas, lutas entre grupos – mas fomos uma cidade e um município com capacidade e competência para vencer crises e encontrar soluções para as divergências. Cidade conservadora e, paradoxalmente, também progressista, Piracicaba conviveu com o estranho, com o diferente e fez amálgama dessa riqueza humana que valorizou ainda mais as riquezas naturais. Mas o golpe militar chegou em 1964. E, com ele – é inevitável deixar de admiti-lo – foi enterrada a “caveira de burro” em nossa terra.
Para se tentar entender a mediocridade de nossas lideranças, a falta quase total de espírito público, é preciso atentar para a “caveira de burro”. Pois ela – como uma maldição – foi responsável por, nos 1970, a cidade e o município passarem a ter lideranças despreparadas, sem que houvesse a necessária transição entre o anterior e o novo. Nossos principais líderes – no poder e outros já preparados para sucedê-los – desapareceram quase que ao mesmo tempo. E o vazio se foi ampliando.
Começou com a morte repentina de Luciano Guidotti, o grande líder conservador. Ele morreu subitamente, ainda no cargo de prefeito. Na eleição para sucedê-lo, foram eleitos – por uma linha mais progressista – o popularíssimo deputado Salgot Castillon e o respeitabilíssimo Cássio Paschoal Padovani, como vice-prefeito. Salgot, como prefeito, foi cassado em seus direito políticos pelo golpe militar. Cássio Padovani assumiu, uma liderança forte e confiável. Mas, pouco tempo depois, morreu ainda no cargo, vitimado por problemas cardiológicos. Outra liderança forte, Humberto D´Abronzo, foi perseguido pelo golpe militar,afastando-se da vida pública. E personalidades proeminentes – preparadas para a liderança política – morreram, todas elas, quase ao mesmo tempo: Guerino Trevizan, Jorge Antônio Angeli, João Guidotti. A “caveira de burro” provocou o mais absoluto vazio de lideranças jamais visto em uma só terra.
Depois, a liderança passou, quase por inércia, a jovens despreparados, mesmo que alguns deles tenham sido, pelo menos no início, idealistas e de boa vontade. Mas já estávamos no tempo da política como interesse pessoal e de grupos. Imperava a Lei de Gérson: “É preciso levar vantagem em tudo.” Os grandes homens não deixaram herdeiros. E a terra – antes fértil, onde germinavam sementes generosas – ficou árida, permitindo nascessem apenas ervas insignificantes.
O mundo globalizado deu por encerrado o “fim de linha”. Mas a “caveira de burro” não foi, ainda, desenterrada. A esperança está em uma nova geração, nascida da indignação. Espero, antes de chegar ao meu inverno, ver isso acontecer ainda no meu outono.