Reflexões no meu outono (VII)

Princípios moraisUma das filhas amadas e o marido – ela, socióloga; ele, geógrafo e geólogo – são, como os chamo, andarilhos da vida. Saem, em pesquisa, mundo à fora. Nunca sei onde estão, por mais me avisem com antecedência. Ora num lugarejo da China, ora numa metrópole do Japão, ora entre budistas da India ou junto a povos primitivos da África. Mergulhados em tantas e diversas culturas adquiriram, para inveja minha, uma visão humilde de mundo e de humanidade. Conseguem conviver com intelectuais de Paris e de Nova York, bem como com pajés de tribos africanas.

Numa de nossas conversas – ou melhor: numa das falas deles, pois quero ser ouvinte sedento do que têm a contar – disseram-me da experiência humana que tiveram no Mali. Banhavam-se em rios ou com canecas da água que escorria de caneletas de bambus. E, nos finais de semana, participando do ritual dos malineses, iam até as montanhas onde famílias deixavam os seus anciãos. Pois anciãos eram instalados nos altos das montanhas, quanto mais perto do céu melhor, para ouvir o que as aves contavam. Eram os áugures das famílias. Comida, água, cobertas eram levadas pelas tribos para que eles não passassem qualquer necessidade. A missão deles, dos velhos, era apenas uma: ouvir avisos das aves. Pois aves avisam.

Outro dia, na Venezuela, o candidato a sucessor de Hugo Chavez contou que, estando numa igreja, um passarinho entrou, deu voltas em torno de sua cabeça e lhe cochichou instruções. Para ele, a ave avisou ser portadora de recados do próprio Hugo Chaves. O Maduro, portanto, fez-se áugure de augúrios que apenas lhe convinham. Dessa forma, não sei se os anciãos do Mali – e de outras tribos – ouvem o que bem desejam ou se as aves realmente conhecem segredos que a nossa vã filosofia desconhece, dos tantos mistérios existentes entre o céu e a terra.

O de que não se pode, no entanto, duvidar é a intuição. Ela existe, no ser humano, como uma forma superior de inteligência, ainda que muitas vezes manipulada por charlatães ou simples supersticiosos. A descoberta do conhecimento começa pela intuição, algo que ainda não se entende inteiramente, apesar de tão exaustivamente explicado. É como um sentimento que se capta no ar, podendo, inclusive, ser uma intuição coletiva. E, quando esta acontece, o que parecia invisível ou apenas sensitivo se torna realidade palpável. Intuição, na verdade, acaba sendo uma experiência importante na vida do homem e das comunidades. Saber entendê-la é o grande desafio.

Certa feira, à hora do almoço, lá estava eu no restaurante de um velho amigo. Éramos apenas ele e eu, todas as mesas vazias. Então, alguns pássaros começaram a entrar pelas janelas, a voejar pelo salão. Era um espetáculo deliciosamente ingênuo. Mas meu amigo, o dono do restaurante, franziu os cenhos: “Pássaros voando e vivendo em área urbana são sinal de fome.” E explicava: pássaros migram dos campos quando árvores desaparecem, quando o solo deixa de dar frutos. Ou seja: para meu amigo, aves avisam, sim.

Tenho pensado nisso pois, de certa forma, sinto-me como aqueles velhos anciãos africanos farejando, no recolhimento, os sinais dos tempos, os sinais da história, sinais da vida. Quem já percorreu o caminho conhece a estrada, pois foi, voltou e fica olhando os que tentarão fazer a mesma passagem. Nada a ensinar. Pois experiência é, desgraçadamente, algo pessoal,que se não transfere e que, mesmo quando mostrada, não serve a ninguém. Muitas vezes, não serve mais nem a quem já a teve. No caminho, há pedras incontornáveis, abismos profundos, planícies serenas, animais ferozes, bichinhos afáveis. O bem e o mal parecem caminhar lado a lado, como se um pretendesse vencer e abolir o outro.

Anciãos sabem que existe o fundo do poço, que há o muro final no caminho, impedindo se continue a caminhada. Por saberem disso, anciãos sabem que, chegando-se ao fundo do poço, nada mais resta senão sair dele. E sendo barrado, ao final do caminho, pelo muro intransponível, a única sabedoria é a de retornar. Ora, estão no ar – em todo o mundo, como numa comunhão de intuições – sinais de estarmos pertíssimo do fundo do poço, de que o caminho começa a ser definitivamente bloqueado. Em breve, dentro de muito breve, só nos restará o passa atrás, um retorno, nem que seja para recuperar pegadas perdidas.

O eterno retorno de Nietszche nada mais é do que a constatação de que o bem retorna. Aconteceu no Renascimento, quando artistas, filósofos, pensadores entenderam que o retorno aos princípios era a única via de renovação radical da vida pessoal e social do homem. Piracicaba deveria ter o seu Conselho de Anciãos para ouvir o que as aves avisam. E mostrar, a políticos e governantes, que o fundo do poço pode ser também a queda no abismo sem fim. E, então, algo sem recuperação.

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