Reflexões no meu outono (VIII)

CarvalhoNão sei se digo por mim mesmo ou por minha geração. Mas a realidade é que, para mim – ou para nós – está cada vez mais complicado participar desse mundo do espetáculo que, com rapidez avassaladora, se aproxima da barbárie. A impressão – passo a falar por mim, para não envolver os que discordarem – é de que se saiu de um baile de gala para cair numa farra que sabe a gandaia.

Ainda em plena II Guerra Mundial – quando o mundo se transformava pela violência e pelo rompimento de todas as regras – Piracicaba viu a lucidez de um homem culto e civilizado – o prefeito nomeado Jorge Pacheco e Chaves – anunciar seu projeto de administração. “É preciso civilizar Piracicaba.” – anunciou ele, diante do desmoronamento de valores. E iniciou seu sonho a partir da beleza. Pois ele decidiu que faria, da praça central – então chamada Largo da Matriz – uma pequenina imagem dos jardins franceses das Tulherias. Fez o que pôde naquele pequeno espaço. Mas a sua ambição era o convite ao acolhimento, ao convívio, à cortesia, virtudes que estão embutidas em noções de cultura e civilização.

Numa época de imigrações crescentes – mais árabes, mais italianos, mais espanhóis, mais judeus, mais japoneses – havia um conflito de hábitos e de costumes. Pois, anteriormente, Piracicaba fora cultivada a partir da óptica de franceses e ingleses ligados a empresas de grande porte e à influência dos monarquistas – em especial os barões de Rezende e Serra Negra – e das famílias Moraes Barros, Morato, Teixeira Mendes,Arruda Botelho, entre outras. As imigrações criaram os choques naturais de cultura, hábitos e costumes. Fazer a síntese deles foi o grande desafio. E, nessa interação e integração, surgiu uma Piracicaba diferenciada, cortês, a “Piracicaba risonha e franca”, para parodiarmos o poeta.

A urbanização acelerada é, entre outros, problema mundial. Piracicaba sofreu e sofre dela. No entanto, tudo seria amenizado se, na administração pública, tivéssemos aqueles que, no dizer de Ruy Barbosa, “plantassem carvalhos e não apenas couves.” O verdadeiro líder político e homem público de visão enxergam antes, acompanham os sinais dos tempos. Quando as ameaças despontam, eles já estão preparados para enfrentá-las. Nas últimas décadas, Piracicaba deixou-se inchar, fingindo fosse, isso, progresso, desenvolvimento. Foi apenas crescimento desordenado, como está sendo agora. Um inchaço sem infraestrutura, uma invasão galopante e descontrolada, vendavais que derrubam casas construídas na areia.

O Rio de Janeiro já estabeleceu penas para quem sujar as ruas da cidade, os logradouros públicos. Piracicaba foi tida, nos 1920, a cidade mais limpa do Brasil, com preocupação ímpar em educação e higiene pública. A febre de instalação sem planejamento de indústrias nos trouxe levas de migrantes sem qualificação profissional que não tiveram alternativa senão a de criar favelas, justamente numa cidade que as não conhecia. O planejamento urbano – que foi um pioneirismo secular do Senador Vergueiro e do Alferes José Caetano – desmoronou.

E tudo desmorona. Não por progresso ou desenvolvimento, mas por desordem, desorganização, inchaço. Uma cidade civilizada – como a preconizada por Jorge Pacheco e Chaves – é um espaço de cortesia e de acolhimento, de respeito mútuo. Agora, a violência não é mais prioridade de bandidos e de marginais: está no próprio povo. O individualismo se tornou doentio. Vizinhos não se conhecem. Pessoas se atropelam nas ruas, nos supermercados, nos lugares públicos. Jogam-se latas de refrigerantes e de cerveja nas ruas. Filas não são respeitadas. O lema “é preciso levar vantagem em tudo” se tornou regra. As pessoas polidas intimidam-se, enquanto a horda de bárbaros cresce e domina.

Piracicaba era “risonha e franca” porque havia princípios de civilidade. E estes são anteriores à educação. É o homem civilizado que está preparado para ser educado. As crianças, incivilizadas a partir de seus lares, não podem ser educadas nas escolas, não há como fazê-lo. Nem mesmo se torna possível ministrar-lhes sequer o ensino formal.

O investimento que se há de fazer – e o atual prefeito falou em humanização – é na civilidade, na urbanidade. O espaço público é, na maioria das vezes, mais sagrado do que o espaço privado. Neste, a família pode fazer o que quiser. No espaço público, não. Há que existir uma interação e respeito mútuos. Nos velhos compêndios de civilidade, havia uma regra que deveria ser lembrada e adotada com urgência:

“Se os modos agradáveis e gentis têm força para provocar a benevolência daqueles com os quais convivemos, os modos boçais e rudes, ao contrário, incitam os outros a nos odiar e desprezar.”

Em Piracicaba – que era “risonha e franca” – os modos boçais e rudes estão levando pessoas a se odiarem e a se desprezarem. O nome disso é guerra.

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