Reflexões no meu outono (XIV)

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Qualquer dia destes, ainda escreverei a respeito da saudade e do saudosismo, do saudoso e do saudosista. Hoje, não. Além da preguiça, há uma sensação de vazio de sentimentos não meus, mas coletivos. O problema é grave: sem um mínimo de espiritualidade, nada permanece e tudo é descartável. O mal do relativismo dos tempos é doença pegajosa: “nada é verdadeiro, nada é falso.” E, assim, lá vai caminhando a humanidade sem saber para onde ir.

Não me esqueço – e também já escrevi sobre isso – de quando decidi ir-me embora de Piracicaba, esmagado por tantas pressões e perseguições políticas nos malditos anos da ditadura onde cada guarda da esquina se sentia maior do que o ditador. Foi quando recebi a visita do inesquecível jurista Luiz José de Mesquita, que era cunhado do Bispo Aníger Melilo, meu pai espiritual. O dr. Mesquita – com sua humildade comovedora – pediu licença para me dar conselho: “Não se vá, não faça como eu que deixei minha cidadezinha. Cresça com ela, morra com ela, mas não se ausente. Pois, quando voltar, não encontrará mais nada do que fez parte de sua vida: o banco onde se sentou com a primeira namorada, a árvore atrás da qual os garotos faziam xixi, o cinema do primeiro beijo no escurinho…”  Emocionei-me, segui o conselho do dr.Mesquita, fiquei.

De quando em quando, à noite, passo pelo centro da cidade, agora aberto aos veículos. É um deserto de pessoas. E, também, é como se os fantasmas do COMURBA pairassem sobre o local, gemendo, lamentando-se. Enquanto todas as mais importantes cidades do mundo – e também as cidades médias inteligentes – cuidam da recuperação de seu centro histórico, Piracicaba continua renegando-o. O povo deixou de existir.

E, numa tarde dessas, tendo de ir ao banco do qual sou cliente,  resolvi andar pelas ruas centrais. Lembrei-me do dr.Mesquita e, então, tive consciência de  o conselho dele ter-me valido pouco.  Fiquei, vi as mudanças, algumas transformações criminosas, vejo as coisas morrendo antes de mim. Como foi possível o crime cometido contra o Hotel Central, um patrimônio histórico que estava na própria história do Brasil, à porta do qual foi assassinado o maior de nossos pintores à época, Almeida Júnior? Como pudemos permitir que, na calada da noite, o derrubassem e, em seu lugar, se erguesse um monstruoso estacionamento vertical? Como é possível alguns imaginarem que sua ganância será saciada com a morte de valores espirituais e históricos? A vida se vinga, é questão de tempo.

E o “Campo do XV”, o glorioso e pequeno Estádio da Rua Regente, com seu gramado heróico onde Gatão, Idiarte, Cardoso, Strauss derramaram sangue e suor? Agora, aquele templo de uma paixão piracicabana lá está transformado em vulgar supermercado, ainda que todo poderoso. Cadê a “calçadinha de ouro”, na qual moças lindas e ainda tímidas desfilavam, entrando na “bombonière” do Passarela para namoricos fugidios, passeando à frente do Cine Politeama, tomando “frapé” de coco no bar da esquina, a famosa Nova Aurora? Ah, a Nova Aurora, onde reinava – fulgurantemente bela – a então jovem Augusta Maygton, depois dona da padaria lendária, o Vosso Pão. Cadê o Passarela, cadê a Nova Aurora, cadê o Vosso Pão? O gato comeu.

Como é possível imaginar uma Rua Governador sem a Porta Larga da família Maluf, a Galeria dos Tecidos do Ultímio Tardivo, a Relojoaria Gatti, o Céu Cor de Rosa do Jorgito Kraide, a Oficina Vesúvio dos Irmãos Furlan, a Casa Cardinalli, a GMC de Luciano Guidotti, a Casa Guidotti do João, a farmácia do “Seo Canto” e do Alan, a Casa Nelly do Joaquim Sérvolo, as lojas do Natan, do Polacow, do Peu, o supermercado pioneiro do Lélio Ferrari, os pastéis do Mário Japonês? Pois o gato também comeu.

À noite, o centro fervilhava de estudantes, de boêmios, de namorados. Os clubes Coronel Barbosa e o Cristóvão movimentavam-se com o alarido de uma juventude esperançosa e com a compostura das famílias recatadas. Os cinemas Broadway e São José dividiam-se para acolher as classes sociais: os ricos naquele, os pobrezinhos neste. Até os preconceitos sociais e raciais pareciam feitos de cordialidades: negros fazendo o “footing” na quadra demarcada pelo Banco do Brasil; no jardim, em círculos concêntricos, mocinhas desfilavam de mãos dadas enquanto os rapazes olhavam com cúpidos olhos apaixonados, enviando bilhetes, fazendo sinais, na paquera que se chamava flerte. Não se paquerava, flertava-se. E o gato comeu.

Bares famosos eram palco de discussões monumentais, filosóficas, políticas, apenas boêmias. Eram a Leiteria Brasileira – na esquina e no térreo do Clube Coronel Barbosa – o Senadinho, ao lado da velha e romântica redação do “Jornal de Piracicaba”, o Giocondo, a Brasserie, o Ernani´s, o Bar  Comercial onde se ergueu o Edifício Brasil, o Daytona, o Bule, a sorveteria Paris, o bar do Tanaka, o Líder Bar… O gato também comeu.

Passei pelas ruas de minha terra e tive, apenas, saudade. Nada mais do que saudade. Tudo se foi, como  também eu vou-me indo. O homem é feito de sua memória.  As cidades também. Quando também a memória morre, tudo morre. A angústia pessoal é ver minha terra amada morrendo antes de mim. O toucinho estava aqui. Não importa mais perguntar onde ele está. Pois o gato realmente o comeu.

O saudosista quer que o morto retorne, aguarda sua ressurreição, vivendo o que nunca mais voltará. O saudoso apenas tem saudade. Estou e sou saudoso de minha terra que o gato comeu. E me parece irônico – ou trágico? – começar a escrever o necrológio dela, enquanto começa a surgir outra que é filha apenas do mercantilismo. A beleza espiritual? Também esta o gato comeu.

3 comentários

  1. Delza Maria em 13/06/2013 às 20:03

    O saudoso fica com a saudade. Verdade, Cecílio! E foi exatamente esse sentimento, que, quando acordado por algo, ou por alguém, volta com um carinho triste e bate lá bem no fundo da gente. Sua crônica nos tomou pelas mãos e nos fez caminhar com ela pelo centro da cidade e constatar que você tem razão. Para um filho da terra, não existe Rua Governador sem a velha Porta Larga, sem a Galeria dos tecidos, do amigo querido Ultímio Tardivo, sem a Relojoaria Gatti, sem O Céu Cor de Rosa e sem outros pontos onde nossa juventude brilhou, enquanto o toucinho continuava lá e o gato, da infância de todos nós, não o tinha ainda comido. Sua crônica findou melancólica. A saudade que ela trouxe, porém, ficou.

  2. Carlos Queiroz em 21/06/2013 às 16:08

    Quer ajudar e toma tiro, valeu GCM despreparada.

  3. Luiz Alberto Hyppolitom em 17/07/2013 às 21:18

    Lindo comentário. Viajei nas memórias do meu "querido Centro da cidade"= era assim que nós que morávamos em bairros mais distante , chamávamos.
    Tenho sessenta e três anos de idade, dos quais, cinquenta e cinco, diariamente no "centro". Tenho em minha memória, cada metro dessa região. Lembro ainda Casa Henrique- Livraria e Papelaria Marabá; Padaria Inca; Importadora Rex de Ferramentas; Bonilha, Bazar Modelo, Casa Neusa, Loja Alvorada, Casa Germano, Rei das Roupas Feita e Elmo Magazine ( saudades do "seu" Elpídio Roberti ( Carlão/Roberto seus filhos)
    Vou parar de escrever, deui um "nó" na garganta.

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