Reflexões no meu outono (XVIII)

Fonte: Wikipedia

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Confesso estar entre aqueles que se surpreenderam com a eclosão dos movimentos populares nas ruas. Tudo foi tão repentino e aparentemente espontâneo que se tornou difícil até mesmo entendê-los ou avaliá-los. De minha parte, por já ter assistido a filmes semelhantes – ao longo de uma já longa vida jornalística – admito ter ficado com dúvidas e receios. Afinal de contas, gato escaldado tem medo de água fria. E para quem sabe como as coisas começam sem, no entanto, saber como terminam, há que se ficar com a pulga atrás da orelha. Fiquei.

Tudo começou com a indignação, justíssima, diante dos péssimos serviços públicos, em especial os dos transportes urbanos. Não há brasileiro – com exceção dos que transitam de helicópteros e jatinhos – que se não ressinta disso. Desde prefeitos, a governadores e ministros de transportes, todos deram, até aqui, preferência à construção de estradas para automóveis, rodovias, avenidas, pontes – para automóveis particulares. O transporte público foi ignorado e todos sabem alguns dos motivos, incluindo o da corrupção, talvez o principal deles. Afinal de contas, qual empreiteira do país não está, no mínimo, sob suspeita de algo?

Aconteceu que as manifestações – inicialmente tidas como democráticas – acabaram, a pouco e pouco, descambando para a violência, para o vandalismo, para o protesto inútil e desqualificado. Afinal de contas, qual o sentido de uma marcha das “Mulheres Vadias”? Ora, a vadiagem por opção não pode ser levada a sério e é, pelo contrário, um condenável testemunho para a juventude. Ao mesmo tempo, qual o significado do movimento “Passe Livre”? Por que, para quem, qual a razão de “passe livre” num sistema democrático e claramente capitalista? Aliás, um dos criadores do neoliberalismo, Milton Friedman, já havia dito a frase que se tornou célebre: “Não existe almoço grátis no capitalismo”. Nem mesmo, aliás, num capitalismo humanizado. Se Friedman ajudou a desgraçar o mundo, a verdade é que, nisso, ele teve razão.

Ora, isso significa que uma pessoa ou uma sociedade não podem ter alguma coisa vinda do nada, mesmo que isso aparente ser gratuito. Tudo tem um custo para alguém ou para a sociedade como um todo, até quando esse custo esteja oculto ou pulverizado entre muitos cidadãos. “Passe livre” é o mesmo que “almoço grátis”. Logo, não existe. E, se existir, custará, injustamente, para toda a sociedade. Contra o que se há de protestar é quanto ao verdadeiro e justo custo do serviço e de sua melhor qualidade. Logo, “passe livre” apenas como “passe livre” não pode e nem deve ser o mote principal de uma luta popular. É reivindicação irrealista, ilegítima, que previlegiará alguns em prejuízo do todo.

Temos que admitir haver excessos e orquestrações nas últimas, violentas e injustificáveis manifestações populares. Elas passaram a ser perigosas porque não adequadas ao verdadeiro espírito democrático. Este é assentado e sustentado pela lei. Sem regras, a democracia tem outro nome: anarquia. E, na desordem, torna-se oclocracia, governo de multidões descontroladas, como parece estar próximo de acontecer. A bandidagem, a malandragem, a molecagem, a desordem, a baderna – tais abusos e crimes apenas aumentam os temores de quem já viu e assistiu a filmes semelhantes.

A democracia brasileira é frágil e já nasceu marcada por acordos e concessões. É engano dizer ter sido o povo quem a conquistou,mesmo quando se lembram as “Diretas Já”. A redemocratização, na verdade, foi uma concessão de governos militares exauridos, fracassados. Ernesto Geisel já houvera feito a majestática concessão: “Abertura lenta, gradual e segura”. O figurino foi ele quem o traçou. E, quando se elegeu o primeiro presidente após o regime militar – por eleições indiretas – a posse dele foi, também, uma concessão. Pois, quando Tancredo Neves adoeceu, vindo a morrer, precisou haver grandes negociações com os militares para a posse de José Sarney. Logo, foi uma democracia consentida. Negociada. E continuou a ser negociada por políticos, partidos, empresários, banqueiros, militares.

Marx – com sua genialidade que, agora, volta a ser respeitada e reconhecida – advertira: “A história acontece, primeiro, como tragédia; depois, como farsa”. A tragédia, ele a vira com Napoleão Bonaparte. A farsa, com seu sucessor, Luiz Bonaparte. Por outro lado, há a sabedoria do provérbio que quase ninguém leva a sério: “Povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la.”

O golpe de 1964 encontrou seu grande pretexto exatamente nas explosões populares irrefletidas, em greves sem motivo, em locautes de empresários, em passeatas sem objetivo, em quebras de hierarquia. 1964 aconteceu num processo semelhante ao que estamos presenciando: bandidagem + molecagem + desordem + vandalismo = fuzis nas ruas.

Até aqui, muitos se queixaram da ação algumas vezes violenta das forças policiais. Mas podem anotar: dentro em pouco, será o próprio povo a pedir que forças armadas – fuzis e tanques – saíam as ruas para conter o vandalismo organizado. E a história poderá repetir-se, agora, ao mesmo tempo como tragédia e como farsa. Não queiram viver para ver. De minha parte, as pulgas me fazem cócegas em ambas as orelhas. E estou apreensivo.

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