Reflexões no meu outono (XXI)

Coração e RazãoO sentimento, o estado de espírito, a sensação são, enfim, de uma libertação. Basta imaginar um escravo com mãos e pés amarrados, enquanto sua alma voava por buscas empolgantes. O espírito enlevava-se, mas o corpo se mantinha prisioneiro, incapaz de acompanhar a liberdade até mesmo do pensamento. Assim – finalmente o percebi – foi a minha luta pessoal por toda minha vida. Fui prisioneiro da razão, mesmo tentando que ela se fortalecesse para ouvir a voz do coração.

Foi um sonho: eu queria aprender e aprender, conhecer, saber das coisas, encontrar caminhos e, então, fazer a razão ouvir e atender e ajudar a voz do coração. Pois nem sempre eles dialogaram entre si. Ora, não irei ficar filosofando sobre a razão, essa faculdade que, dizem, nos distingue dos animais. Há razões demais no mundo e, por não terem diálogo com o coração, causaram tragédias e provocarão mais destruições. Qual razão tem mais razão: a razão comunista, a capitalista, a do Estado, a cristã, a budista, a razão do mercado?

Na realidade,  o ser humano – se conseguir, algum dia, uma gota poderosa de humildade – aprenderá que, sem o coração, não há razão alguma que valha a pena  como referencial de vida. Pascal – sem que ainda o levemos a sério – já nos revelara a sua descoberta racional e espiritual: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Mais o quê precisa ser falado? Que outra lição seria, ainda, necessária para atingirmos ou alcançarmos o maior tesouro humano, que é, pelo menos, uma pequenina sabedoria de viver.

Chego, enfim, a um momento da vida em que posso dizer ter tentado – muitas vezes até alucinadamente – viver seguindo ora a razão, ora o coração, mesmo porque não conseguia conciliar os dois. Tanto a razão como o coração me fizeram errar, levaram-me a escolhas equivocadas, ainda que – com um ou com outro – tivesse, também, encontrado soluções certas. Algo inquietante, no entanto, sempre me acontecia: quando eu errava por ter ouvido a razão, ficavam-me amargores e desalentos; quando errei por ouvir o coração, ficaram alívios e até mesmo uma certa paz. Pois, na verdade, nunca houve erro na voz do coração. O erro acontecia na maneira de ouvi-la.

Houve um tempo de minha vida – mais de duas décadas – em que o coração, preenchido por convicções espirituais, falou de forma abundante. E a razão humilhou-se diante dele, querendo entendê-lo. Eu me sentia fortalecido, energizado, confiante, feliz, movido por uma causa que se ia tornando plenificante na medida em que se ia realizando. O coração não era meu senhor, mas minha bússola de vida. Foi quando – devagarinho – a razão começou a questionar, a indagar, a perquirir. E cometi a grande loucura de ceder à razão, querendo que ela me explicasse o que me ensinava o coração. Foi como se, lentamente, eu achasse que ser e estar feliz era loucura, algo irracional. Logo, para ser e estar feliz eu teria que entender. E me entreguei de novo à razão. E me tornei escravo dela. E o coração me escapou.

Na verdade, descobrir ser – desde a adolescência – alguém com necessidade vital de ter uma causa pela qual lutar, em que acreditar, incapaz de aceitar o comodismo ou indiferença. De causa em causa, fui caminhando, lutando, caindo e levantando. Deu-se-me, então, o que, hoje, posso admitir ter sido uma tragédia pessoal: escolhi a razão, sequei o coração. Perdi a sabedoria de tentar – como fora meu sonho – fortalecer a razão para ela abrir caminhos para o coração. Caí num abismo de perplexidades. Vaguei por sombras. Conheci o vazio profundo. Perdi olhos de ver e ouvidos de ouvir. E não mais senti o pulsar do coração.

Agora, parece-me – e espero em Deus assim seja – que meu barco retorna a Ítaca, após cantos de sereias e mares tempestuosos. Sinto-me um frágil e cabisbaixo Ulisses retornando à terra sólida onde Penélope me esperou, tecendo a lã. Ou, como o filho pródigo – que se deu ao estúpido luxo de esbanjar riquezas – voltando à casa paterna. Foi uma longa viagem, odisséia de um simples homem, árdua caminhada  que pensei não teria fim ou que não levaria a lugar algum. Misteriosamente – ou falando com honestidade renovada: por uma graça especial – foi vendo e ouvindo Francisco, o Papa, que meu coração ressurgiu, limpo de limbos e de poeira.

Minha razão está, ainda, perplexa, aturdida. Pois, inesperadamente, ela foi, enfim, domada pelo coração. Estou pronto para uni-los. E isso, ainda outra vez, muda minha vida, meus planos. Começa por uma história que eu vinha querendo contar, escrevendo. Tenho que recomeçar. Aquela história era toda feita de razão. Agora, o coração abrirá os caminhos. Um confiteor, por que não?

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