Todo Abel tem seu Caim.

Quando Barjas Negri fala de suas relações pessoais com o empreiteiro Abel Pereira, não sei mais se a minha é vontade de rir ou de chorar. De qualquer maneira, a certeza é a de que políticos da velha guarda – nascidos, alguns deles, oportunisticamente nos tempos da ditadura – são, realmente, como os lobos: perdem o pelo, não perdem o hábito. E quase me penalizo do Abel Pereira, que sabia dos riscos de sua convivência com políticos e que, por isso mesmo, não deve sentir-se surpreendido com o lado por onde a corda está arrebentando. Abel e Barjas são amigos e velhos conhecidos desde os tempos em que Barjas Negri era um iniciante secretário municipal do então prefeito João Herrmann Neto.

Até pouco tempo, eu me sentia agredido diante de mentiras e farsas de políticos. Deixei de senti-lo, até mesmo por questão de saúde física e mental. Há aqueles que mentem tão deslavadamente que parecem, realmente, acreditar nas próprias mentiras. E que usam argumentos tão deslavados que pensam, também, o povo seja idiota. Lembro-me de uma lição que aprendi ainda no antigo e distante curso ginasial: “Quando falar ou escrever, pense que sempre terá alguém mais inteligente do que você.” Barjas Negri não aprendeu essa lição quando diz que nada existe de errado no fato de Abel Pereira ter sido um dos patrocinadores de sua candidatura e ser, depois de eleito, um dos que mais realizam obras para a Prefeitura, todas elas, como se sabe, a partir de licitações. Barjas está outra vez equivocado em sua falsa verdade: há profunda imoralidade em alguém financiar candidaturas e, depois, participar de concorrências em governos eleitos a partir de tais financiamentos.

A questão, porém, é outra: a solidão de Abel Pereira. Foi deixado à míngua. E isso, com certeza Abel sabia, é sempre o inevitável risco de ter entendimentos, sejam eles quais forem, com políticos profissionais. Abel sabia que, em sua vida, haveria um Caim. É o destino de todo Abel. Ora, Caim existiu – e sempre haverá de existir – como o “mal amado de Deus”, pelo menos é como o Caim bíblico se sentia, diante das vantagens que Abel levava. Pois Caim, na verdade, não tinha valores elevados, ambicioso com a terra e os bens dela.

O nome Caim significa “posse”. Para apossar-se das coisas, Caim traiu o próprio Deus, negando a parte do trabalho que cabia ao Todo Poderoso. Matar Abel foi conseqüência de sua opção pelo poder, pela posse, pelos bens materiais. Ciumento, orgulhoso, revoltado, Caim ficou só, sendo amaldiçoado por Deus. Caim será, para todo sempre, aquele que não tem pai, nem amigos, nem irmãos. O escritor Luc Estange tem uma frase tristemente bela, na afirmação de que Caim foi o inventor da morte no mundo, o primeiro homem a matar: “A morte é ser obrigado a dormir sem jamais poder despertar.” Caim tornou-se um sonâmbulo, um errante, maldição dos céus.

Abel Pereira, que não é bobo, deve saber disso. Pois, na vida, todo Abel tem o seu Caim.

 

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