Corrupção, a galinha e o ovo (1)
Um dos mais sábios e dignos homens que conheci foi Abel Pereira, o velho. Pai de Jaime Pereira – avô do Abelzinho, que morreu em meio a escândalos nacionais – o velho Abel foi o verdadeiro patriarca dos bairros Paulista, Pauliceia, Jaraguá. Sentado numa velha cadeira, à porta de sua casa – essa é a imagem que guardo dele – o patriarca recebia verdadeira multidão de pessoas, como um padrinho com mil afilhados. Era conselheiro, cuidador, filantropo, guru, e não houve político da época que não o procurasse para, pelo menos, receber-lhe a bênção.
Jaime Pereira – seu filho amado – tornou-se meu amigo ainda quando éramos jovens. Houve empatia imediata, dois moços rebeldes, brigões, indignados. A morte do velho Abel abriu um vácuo para todos. E, em especial, para o Jaime. E caí, também, naquele vácuo, sabendo que não seria preenchido. Jaime e eu tornamo-nos ainda mais próximos, mesmo que ele, ingressando na política, nos colocasse, muitas vezes, em posições contrárias. Mal sei explicar, mas foi uma amizade que – parecendo ter tudo para não dar certo, tais as divergências, visões de mundo – consolidava-se a cada dificuldade. Nossas brigas terminavam em abraços.
A pobreza nos atingiu, com a prepotência do golpe militar. Jaime foi tentar a vida em Mato Grosso, onde passou dificuldades imensas. De quando em quando – numa quase absurda impossibilidade de comunicação – me telefonava já dos confins do mundo, desesperado: por falta de pagamento, cortavam-lhe a água, a luz de sua casa em Piracicaba, onde a sua heróica primeira mulher cuidava do cacho de filhos pequeninos. E – mesmo com minhas limitações – lá ia eu em socorro do amigo. Que, em outras oportunidades, vinha em meu socorro, sempre disposto a estar a meu lado diante de pressões políticas, dificuldades financeiras. O velho Abel transmitiu a Jaime Pereira o senso de solidariedade. E, mesmo sendo esperto, Jaime guardava raízes de uma formação portuguesa do fio do bigode.
Jaime Pereira – com o velho amigo Chico – ingressou no ramo de construções. Fundou a Cicat e seus contatos políticos ajudaram-no a dar início aos empreendimentos. Trabalhador incansável, esperto, ativo, Jaime progrediu, entrou no jogo de empreiteiros e suas vinculações com o poder político. Aquilo lhe fazia mal, sou testemunha disso. Mas era o jogo do capitalismo selvagem sob proteção de um país com leis ditatoriais.
Certa tarde, Jaime me telefonou, descontrolado. Queria, a todo custo, que eu fosse até o escritório da Cicat, na baixada da rua Benjamin Constant. Em plena efervescência da redação de um jornal, eu não podia atendê-lo. Mas ele insistiu, cada vez mais raivoso. Fui. E, ao chegar, ele me levou a uma sala onde, sobre uma grande mesa, estavam cerca de 15 ou 20 caixas de sapatos. (Já contei essa história.) Furioso, como que enlouquecido, Jaime abriu as caixas e mostrou as montanhas de dinheiro. “Veja, o que sou obrigado a fazer para sobreviver. Tenho que dar propinas a esses prefeitos filhos da p… Se eu não o fizer, os concorrentes irão fazer.” Eram prefeitos da região para os quais, naqueles 1980, a Cicat prestava serviços.
Reflito nessas coisas por perceber que os movimentos contra corrupção neste país – saudáveis mas realizados, em meu entender, de maneira equivocada – parecem acreditar que corruptos e corruptores são atores novos, uma realidade nova. O mundo é corrupto. O poder é corrupto, seja qual for: econômico, ideológico, político, religioso. Pior ainda: o povo, no seu dia a dia, vai-se, também, tornando corrupto. Sonega impostos, tenta subornar guardas de trânsito, oficiais de justiça, “fura” filas, rouba no peso e nas medidas, engana no troco, compra sem nota, alegra-se com contrabandos, não respeita direitos autorais, adquire produtos ilegais, afronta as leis de trânsito, de estacionamento. Parece haver uma única lei, a de Gerson: “É preciso levar vantagem em tudo.” E penitencia-se, acusando o governo e políticos… Em minhas reflexões, estou tentando decifrar o enigma do ovo e da galinha. Quem veio primeiro? E na corrupção, quem vem primeiro; o corrupto ou o corruptor. Enfim, concluo ainda que amargamente; não há solução à vista, a não ser chegando-se ao fundo do poço. Do fundo, não tendo mais para onde ir, resta apenas sair. A grande questão não está em reformas políticas, em novas leis, em combate a isso ou àquilo. A grande questão, em meu entender, é sistemática, orgânica, estrutural. E isso pede uma necessária e imperiosa revolução: a revolução de ordem moral. Uma nação se constrói com homens dignos. Apenas isso.
REFLEXÕES DE UM VELHO ALDEÃO NÃO PODERIA COMEÇAR DE JEITO MELHOR. REVOLUÇÃO DE ORDEM MORAL!
Se formos nos basear nos evangelhos cristãos, o primeiro a aparecer foi o mau administrador (corrupto), pois foi ele quem começou dizendo disse aos devedores:- “quanto deves ao meu senhor?” (Lucas 16; 7-8) e logo emendando com a proposta de redução de dívida….