O profano no sagrado: um shopping entre fantasmas

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(imagem: S. Hermann & F. Richter, por Pixabay)

A tentativa de causar o desencantamento do mundo começou com o Iluminismo. Foi o esforço de, através da Razão, fazer o profano desconstruir o sagrado. O lema foi: “Sapere aude!” – “Ouse saber!” A partir daí, o conhecimento, a razão é que deveriam trazer luzes ao ser humano, o “Iluminismo”. Houve e ainda há quem, cegamente, acredite nisso, como se a razão fosse capaz de tudo explicar, de tudo resolver.

Na história humana, porém – apesar da influência ainda marcante do Iluminismo – tem-se visto que “a teoria, na prática, é outra.” O próprio Descartes reconheceu “os limites da razão”. O ainda sempre admirado Blaise Pascal jogou uma pá de cal no ilimitado da razão: “O coração tem razões que a própria razão desconhece!” E, com isso, manteve vivo o mistério que paira sobre os humanos. Na verdade, confirmava a sábia intuição de Shakespeare: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.” Há quem duvide disso?

Reflito sobre essas coisas sem me esquecer do pensamento espanhol sobre as bruxas: “no lo creo em brujas, pero que las hay las hay.” Bruxas existem. E Piracicaba é testemunha disso, uma cidade encantada por lendas, tradições, mistérios, mitos que sobrevivem aos séculos. E essa para mim quase inacreditável notícia de que se irá construir um Shopping – esse deus do mercado – na fantasmagórica e lendária construção daquela que foi a Fábrica Santa Francisca, a Fábrica Aretusina, a Fábrica Boyes – berço, também, do pioneirismo de Luiz de Queiroz na implantação da iluminação elétrica e da telefonia no Brasil – essa notícia não apenas me indigna, como, também, me faz pensar em uma loucura suicida: dos que a autorizaram e dos que pretendem fazê-lo. Será um desastre anunciado.

Pois Piracicaba tem lugares sagrados. Entenda-se o sagrado como existência do sobrenatural. Que pode ser, na verdade, uma garantia positiva ou proibitiva. O sagrado, portanto, pode ser santo ou sacrílego. O filósofo Heidegger considerou o sagrado “como a raiz do destino dos homens e dos deuses”. E ainda afirmou: “O sagrado não é sagrado porque divino,mas o divino é divino porque sagrado.” Entenda-o quem puder.

Assim, fantasmas e mistérios pairam sobre o sagrado e o sacrílego. Piracicaba sabe disso. E os visionários, mais ainda. Lembro-me de – quando da construção do Comurba – eu passeava, todas as noites, com uma figura admirável e estranha, o Júlio Bruhns, cuja família piracicabana foi ascendente do Prêmio Nobel de Literatura, Thomas Mann. Ao passarmos diante do Comurba em construção, Júlio tremia, entrava em transe, prognosticava: “espíritos maus.” E o Comurba despencou.

A Igreja de São Benedito é intocável, sacrário dos negros escravos. Prefeito – que pensou em removê-la – morreu. E há lugares sombrios que despertam sensações negativas: o largo do Grupo Moraes Barros, o pátio do Colégio Assunção, as cercanias da Catedral. Foram cemitérios, com cadáveres muitas vezes insepultos. E sombrio – também e especialmente – o local onde se construirá – será? – o shopping na fábrica secular. Este, de maneira particular, já nasceria sob duas forças negativas: a histórica – por ser um patrimônio inalienável da caminhada piracicabana – e a fantasmagórica, por ter sido, ali ao lado, o intocável Cemitério dos Índios. E com fantasmas de índios não se brinca. Como, também, com os dos escravos.

Lembro-me de quando, nas imediações, construiu-se – num também histórico barracão – um boate, a “Limelight”. À oportunidade, escrevi a respeito dos fantasmas do local e, em especial, de um deles: o “Homem da Capa Preta”, que seduzia e violava as mocinhas da fábrica. Tentei sugerir que não daria certo. Não acreditaram em bruxas. E a boate – que se dizia semelhante às de Paris, Londres e Nova York – foi levada pelas vassouras das bruxas.

Esse possível novo shopping em lugar santo será sacrílego. Pois o profano não pode invadir o sagrado. O nome dessa tentativa ou ação é apenas um: profanação. E profanar o sagrado é atitude de loucos, suicidas, ou ignorantes. No caso, aqueles que autorizaram e os que irão tentar fazê-lo. Quem avisa amigo é: vai dar encrenca, a má sorte virá. Mais do que o dos brancos, um cemitério de índios tem que ser respeitado. Fantasmas indígenas são impiedosos. O povo, em sua sabedoria, sabe disso. E não há shopping sem povo.

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1 comentário

  1. Antonio Carlos em 27/05/2015 às 11:58

    Essa gente não tem sensibilidade alguma. Pisam o sagrado porque sagrado para eles é o dinheiro. Por isso são e serão sempre infelizes, e feios. Tomara que as almas dos indígenas os assombrem aqui e depois.

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