Carlos ABC e o Cristo da diversidade

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Fran Camargo

Artista desde que se entende por gente, Carlos ABC está envolvido com a Paixão de Cristo de Piracicaba desde o começo. Neste ano, além de assistente de direção, ele é o responsável pelos figurinos e vive João Evangelista. Para ele, o Jesus Cristo do espetáculo é o da diversidade, que defendia os excluídos. Conta que tem a preocupação de não fazer ligação com nenhuma doutrina a lamenta o estado de intolerância a que chegamos. E revela duas decepções na cidade: o fim dos desfiles das escolas de samba e a demora na reabertura do Teatro Municipal.

A Província – Você está há quantos anos na Paixão de Cristo?

Carlos ABC – A Paixão está fazendo 29 anos e eu participo praticamente desde o primeiro. Nos primeiros nem como ator ou figurinista, mas eu trabalhava na Ação Cultural e fiz a intermediação do pessoal que queria montar o espetáculo com o secretário.

Como foi a reação das pessoas?

Não fui eu que tive a ideia, nada disso. O Edmilson Andrade foi quem lançou e eu fui tratando de conseguir alguns apoios. Ele tinha visto em Nova Jerusalém, no Nordeste, e veio com a vontade. E tinha o pessoal do Zé Maria Ferreira, no Sesc, e foi contagiando quem fazia as oficinas lá.

Acreditou-se logo de cara?

Sim. O primeiro ano foi na Esalq e já teve um bom público, embora não se compare com o de hoje. Hoje chega a 50 mil pessoas.

Quando começou como diretor?

Durante muitos anos o diretor foi João Prata e eu entrei em 2006. Esse ano faço assistente de direção. Quem dirige é a Viviane Palandi. Há uma determinação de patrocínio do Ministério da Cultura que o diretor atue por no mínimo dois anos. E ela fez também no ano passado. E também sou responsável pelos figurinos.

Que personagem você interpreta?

Este ano eu abro o espetáculo fazendo o João Evangelista, com a parte do Evangelho que diz “no princípio era o verbo.”

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Esse ano há novidades como acessibilidade garantida e maior participação feminina…

De alguns anos para cá, as discípulas de Jesus têm tido mais destaque. Elas nem apareciam na história.

Maria Madalena era uma das apóstolas?

Ela era uma patrocinadora dos encontros de Jesus. Estamos valorizando a mulher não apenas no elenco, mas na história. Elas aparecem mais, têm diálogos. Elas fazem a entrega dos pães na cena do milagre. Eu vi um documentário que diz que os papas se incumbiram de excluir a participação feminina.

Mas ela ficou com fama de prostituta…

E é errônea essa interpretação. E em muitas Paixões de Cristo ela aparece como se fosse a adúltera apedrejada. E isso não tem fundamento também.

Qual o cuidado que se tem em respeitar todas as religiões, num momento em que isso está complicado?

Nas minhas direções eu sempre procurei não colocar doutrinas religiosas. Porque temos pessoas que participam de várias religiões. E isso é maravilhoso. É legal que nunca se tenha vínculo com nenhuma. Apresentamos o Evangelho, com tratamento artístico, mas independente de doutrinas religiosas.

Porque hoje qualquer coisa gera polêmica, não?

Nossa, é muito sectarismo! Eu nunca vi tanto preconceito, tanto ódio ser reavivado!

Isso te preocupa como artista?

Eu fico muito preocupado! Nos anos 70 se brigou tanto por aceitação de diversidade. De repente parece que tudo isso foi ficando pra trás. Mais importante ainda é a gente fazer esse trabalho com a Paixão de Cristo.

Porque se você se afetar por isso, não faz nada…

Com certeza! O segredo é a gente sempre respeitar as opiniões, mas prosseguir com o trabalho. O Cristo é uma pessoa que pregava sempre o amor, independente de tudo. Aceitava bandidos, prostitutas.

O Cristo que vocês mostram é o da diversidade?

Com certeza! É esse o Cristo que está no Evangelho. Algumas pessoas se dizem religiosas e ficam propagando ódio na internet. Isso é uma coisa horrorosa! Nunca vi a situação chegar nesse ponto, em que as pessoas abertamente defendem o ódio.

Não é bom a gente ficar um pouco fora da internet?

Olha, eu tenho ficado! Porque eu me aborreço muito. E me pergunto qual será o caminho. Será que eu devo falar com essas pessoas?

Mas será que isso não vem de pessoas que vivem numa bolha? Será que isso não dá a dimensão errada de que o mundo todo está assim?

Pois é, você tem razão. No trato diário com as pessoas, às vezes me pergunto: cadê aquele ódio todo? Talvez seja o momento de a gente não dar mais tanta importância para as redes sociais. Você vê o ódio plantado no Facebook e acha que a sociedade está daquele jeito. É isso que essas pessoas querem que a gente pense.

A arte ajuda nesses momentos?

Muito, a arte é um bálsamo! Somente a cultura e a educação podem salvar essa juventude. A arte amplia os horizontes. Você fazendo teatro, passa a entender que cada pessoa é um mundo diferente. Passa a respeitar as diferenças. Cada personagem que você vai interpretar, vai entendendo melhor isso.

Você sempre se interessou por teatro?

Desde criança. Minha mãe, Dona Beatriz, ela não tinha muito estudo, mas não sei de onde ela tirava tanta sapiência. Ela nos levava a ver todas as exposições de arte que tinham na cidade. E muito cinema. A gente era muito pobre, mas meu pai, o jornalista José ABC, tinha permanente no cinema. Então todo final de semana ela ia, com os nove filhos pendurados.

E isso te fascinou de cara?

Eu via aqueles filmes, como O Mágico de Oz, e sonhava. Chegava em casa e queria reproduzir, a Estrada dos Tijolos Amarelos. Essa visão da arte meus pais sempre incentivaram.

Foi uma sorte ter pais assim?

O meu pai me surpreendeu muito. Porque naquela época, anos 70, a rebeldia, eu ouvia as pessoas que faziam teatro dizer que tinham problemas com os pais. E eu coloquei na minha cabeça que meu pai não gostava de eu fazer teatro, mas não era nada disso. Entrei na barca desse povo. Até que em 1978 saiu a regulamentação da profissão e mandei o material para o sindicato, a fim de ter meu DRT. Eu queria na época assinar como Carlos Bueno. Eles estudaram o material, mas colocaram Carlos ABC, que já era uma marca.

E como seu pai reagiu?

Eu pensei que ele não iria gostar da ideia. Mas ele me disse que tinha o maior orgulho! Eu nunca tive essa resistência. Meu pai era tão cabeça aberta que tinha dias que me perguntava: Você vai sair com essa roupa? Ele falava que eu era artista e tinha de colocar alguma coisa diferente!

Você começou a atuar bem jovem, não?

Com 14 anos em Pluft, o Fantasminha. De lá pra cá nem tenho ideia de quantas peças fiz.

Também foi ao exterior?

Fiquei um ano na Itália, mas morrendo de saudade de Piracicaba. Mas tinha um contrato que precisei cumprir.

E São Paulo?

Fiquei cinco anos. Era uma loucura. Eu fazia espetáculos em escolas de manhã e à noite no teatro. E nessa época começou a acontecer teatro em boates. O legal é que eu fazia espetáculos de estilos muito diferentes. A minha característica é a diversidade sempre. Experimentei de tudo. E o Carnaval me ajudou muito.

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Ia chegar no Carnaval. Você, como carnavalesco assumido, como vê as escolas de samba paradas?

Ah eu fico muito triste! A escolas de samba são muito importantes para a comunidade e os enredos ensinam muito. Eu aprendi muito de história do Brasil com os sambas. Acho lamentável que o Carnaval chegue nessa situação.

Você acha possível que os desfiles voltem?

Piracicaba carece muito de renovação. Uma escola de samba que não tiver base na comunidade fica complicada.

Você foi diretor do Teatro Municipal. Ver o teatro fechado é outra decepção?

Está fazendo muita falta esse teatro! Lembro que quando estava para inaugurar o Teatro do Engenho, as pessoas da cidade diziam que seria muito bom. Ele quebra um galho, mas não é o teatro oficial da cidade. É muito triste ter um espaço daquele parado!

Fora a Paixão, está com outros projetos?

Eu sempre estou envolvido com muitos projetos. Como a Paixão consome muito, sempre adio. E gosto muito de montar espetáculos que falem de Piracicaba.

Você já testou e não sabe viver em outro lugar.

Não sei! Quando você está fora e ouve o sotaque já sabe que é piracicabano. Aí vai conversar e é uma festa! A gente atrai essa coisa de caipiracicabanismo. Até tentam criticar, mas nos transformamos isso em orgulho. Piracicaba é muito especial!

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