A adocicada cultura caipiracicabana

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

caipiracicabanidade

Os últimos livros que escrevi levaram-me a um precipício intelectual, a um abismo desafiador. Pergunto-me se pretensão, se apenas delírio de um homem cada vez mais apaixonado por sua terra. Ora, os apaixonados são, por natureza, pretensiosos, tanto e tanto que chegam à beira da irresponsabilidade. Por Piracicaba, mergulhei, sem ser historiador, no mais fundo de nossa história; sem ser artista, embriaguei-me da arte; sem sair palmeando o mundo, fiz de Piracicaba, para mim, o mais belo dos mundos. Mas, até o fundo da alma, tenho a convicção de isso tudo ser real.

Existe uma cultura caipiracicabana? Tenho certeza de, até aqui, ainda haver. Na realidade, somos fruto de uma conhecida e reconhecida cultura caipira. Que – com nossas características, maneiras de ser – transformamos em “cultura caipiracicabana”. A de uma região que resistiu aos terremotos culturais, como se Piracicaba aspergisse, exalasse – de forma contagiante – uma certa maneira de ser, uma singularidade que penso misteriosa, inexplicável.

E terei, comigo, quem também pense assim.

Há uma apenas condição: olhar Piracicaba, olhar nossa história com o olhar de criança. E, portanto, não como pensamento, mas como imagem e sentimento. Apenas isso. Piracicaba viveu, nestes 250 anos, toda a condição humana, que é universal. Conheceu misérias, crueldades, tiranias, conforme a trajetória da epopeia de cada época. Conseguiu, porém, que o belo, a cultura, a arte, a civilização, a luz do pioneirismo superassem as sombras que, desde a povoação, baixaram sobre a população. E venceu!

Assumo, pois, o risco e aventura de ingressar no universo múltiplo da cultura. O pensamento caminha, também ele, com bengala. Tateando, apalpando, duvidando, inseguro, incerto, confuso, curioso – “chi lo sa?” Se tantos e tantos filósofos e pensadores discordam entre si; se tantos e múltiplos conceitos há – por e para quê “enfiar a mão nessa cumbuca?” Afinal de contas, a sabedoria caipiracicabana ensina – e eu não aprendo – que “em briga de nambu, jacu não entra”. Jacu teimoso, entro na briga dos nambus.

A origem da palavra cultura – e também de culto – é latina: “colere”, significando cultivar, conservar, cuidar de. O homem cultiva a e cuida da terra (agricultura); das crianças (puericultura), de abelhas (apicultura) e muito mais. Quanto aos humanos, trata-se do cuidado e da conservação do nosso espaço vital. O conceito de cultura – quanto ao homem – contrapõe-se ao conceito de natureza. Pois supõe o cultivo da arte (o Belo), da moral (o Bem), a filosofia e as ciências (a Verdade), o sagrado (a Religião), a técnica (a eficiência instrumental-prática).

Todas elas, de maneira peculiar, se condicionam e se entrosam mutuamente. O indivíduo participa disso através da formação, iniciação, educação, imitação e criação própria. Mas está sujeito à família e à sociedade, à história, à língua, à tradição, ao trabalho, ao lazer. Quem, em meu capenga entender, me parece oferecer uma explicação por assim dizer quase simplista foi o antropólogo estadunidense, Clifford Geertz (1926-2016): “todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, e este programa é o que chamamos de cultura”.

O grande desafio, porém – e em todos os séculos – tem sido o de saber manter vivo o que é fundamental. Pois a cultura emigra, em contraponto à civilização, que é sedentária. É, assim, diante de mudanças e transformações que se impõe, mais do que o conhecimento, a sabedoria do homem. Os chineses ainda cultivam a lucidez de Confúcio: “Tudo está sujeito a mudança” – um fluxo perpétuo. Que, no entanto, pode ser direcionado. Ora, a deterioração faz parte da natureza das coisas e dos seres vivos. Não há, pois, o permanente absoluto. E a cultura é parte, também, dessa mesma natureza.

Cabe, ao homem, discernir, escolher, avaliar o que pode e deve ser mudado. E que o fundamental seja preservado e cultivado. Trata-se, ainda em meu entender – como já o escrevi diversas vezes – observar e, com olhar místico, a árvore. Nela, estão os princípios, suas raízes; e os valores, os galhos que mudam a cada estação. Se matarem as raízes (o princípio), não mais haverá galhos, flores e frutos (valores).

Antes de encerrar este capítulo, socorro-me do notável antropólogo e filologista dinamarquês, Kaj Birket-Smith (1893- 1977) que, sobre cultura e árvore, deixou-nos a bela comparação: “A cultura assemelha-se a uma árvore de lenda em que cada galho se distingue do vizinho, cada flor possui uma cor e um perfume próprios e cada fruto um sabor especial. Cada cultura e cada povo tem um caráter particular. Mas todos os galhos brotaram do mesmo tronco e se nutrem da mesma seiva. Se os galhos se partem e se separam do tronco, as flores murcham. (…) É uma herança que cria para nós uma obrigação. Mas ao mesmo tempo, somos membros da comunidade humana e nossa cultura é uma parte da cultura universal à qual devemos levar uma contribuição permanente”.

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