Adocicada melancolia

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

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Hoje, as crianças (aqui representadas por Valentina Costa Branco e Beatriz Oliveira Lupo) trocaram as cantigas de rodas e brincadeiras de ruas por jogos eletrônicos e parquinhos de shoppings – Fotos: Anderson/ Marcelo Fuzeti Elias

Piracicaba assimilou, recolheu, criou as doçuras das chamadas “canções de ninar” brasileiras, quase que desaparecidas.

São acalantos que ficaram na memória de muitas gerações, deixando saudade e despertando evocações para alguns; recordando medos, para outros. Especialmente vinculadas a animais, à vida rural, essas canções são reconhecidas como riquíssima herança cultural deixada pelos negros escravos, pelas mucamas.

Pedagogos e educadores, no entanto, deram-se conta, a partir da segunda metade do século XX, que as aparentemente ingênuas cantigas de ninar, as de acalanto, de brincadeiras de roda buscavam, quase sempre, dominar as crianças pelo medo. Alguns chegaram a criar um neologismo: “Espantoterapia”, de fazer dormir pelo medo. Nossa pretensão, neste livro, é registrar um mínimo desse todo encantamento do mítico universo caipira.

A “cuca não existe”

A polêmica se instalou e ainda não foi resolvida. Muitos estudiosos disseram ser tolice querer tratar “cantigas de ninar” como manifestação de poder de adultos sobre crianças. Outros, por sua vez, mostraram ser um processo educativo para que se aprendesse, desde a infância, a enfrentar os medos. E alguns simplesmente continuaram estimulando as canções, alegando que não se pode ter medo do que não existe. “A cuca não existe”, alegavam.

O que não se pode deixar de reconhecer, no entanto, é a melancolia instalada também na melodia infantil. O cancioneiro popular brasileiro é, de modo geral, triste, melancólico, muitas vezes pessimista. A música infantil não discrepou da adulta. E, nas suaves reflexões caipiracicabanas, ela pontificou.

Presença dos bichos

A origem rural das canções de ninar se manifesta pelas figuras apresentadas às crianças: a “cuca”, o “bicho papão”, “o boi da cara preta”. Todos “pegam a criança” se ela não dormir. São clássicos os versos: “Nana nenê que a cuca vem pegá”. E clássico, também, ameaçar o “menino”, que “tem medo de careta”, com “o boi da cara preta”. A invocação do “caipora”, do “tutu marambá” e do “bicho do telhado” dá margem, realmente, à constatação desse poder adulto sobre o universo infantil, a partir da imposição do medo.

Cantigas de roda

Mucamas e babás continuavam a influenciar musicalmente as crianças, quando elas deixavam o quarto de dormir, já participando da vida dos adultos. Nos quintais, nas salas de jantar ou de piano, eram bichos, ainda outra vez, que elas invocavam. “Atirar o pau no gato” pertenceu a todas as gerações: “E o gato-tô-tô não morreu-reureu; Dona Chica-ca admirou-se-se do berrô, do berrô, que o gato deu”.

Misto de tristeza e de ligação com os animais era a canção do boi que morreu: “O meu boi morreu/ que será de mim?/ Manda buscar outro, maninho./ Lá no Piauí”.

Tristeza e solidão

Por outro lado, a melancolia “das três raças: negro, índio, português” fica expressa nas “cantigas de roda”, que vinham, na linha do tempo, logo após as “cantigas de ninar”. Marcaram muitas gerações as referências a um bosque, a anjos, à saudade. As crianças cantavam, embebiam-se da melancolia sem, certamente, darem-se conta de tanta solidão e amargor dos adultos.

 

Uma das mais famosas: “Nesta rua, nesta rua tem um bosque/ Que se chama, que se chama solidão/ Dentro dele, dentro dele mora um anjo/ que roubou, que roubou meu coração”.

E o anjo respondia, sem despertar esperanças, mas revelando, também, a sua tristeza: “Se eu roubei, se eu roubei teu coração/ Foi porque tu também roubaste o meu”.

Essas solidão e tristeza, por fim, ficaram definitivamente marcadas na cantiga que se tornou a mais célebre e popular de todas, a “Ciranda, Cirandinha”, que diz: “O anel que tu me deste/ Era vidro e se quebrou/ O amor que tu me tinhas/ Era pouco e se acabou”.

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Foto: Marcelo Fuzeti Elias

Jardins também tristes

A melancolia brasileira se refletiu, também, até mesmo nas cantigas que faziam referência a flores e a jardins. Autores há que disseram serem “flores e jardins amargurados”. Como se para lembrar que os amores humanos são difíceis, que namorados brigam, a canção falava de tragédia também entre as flores:

“O cravo brigou com a rosa/ Debaixo de uma sacada/ O cravo saiu ferido/ E a rosa despedaçada”.

Como a ensinar que corações masculinos se ferem mais do que os femininos, a canção mostra a generosidade da rosa, diante de seu amor ferido, o cravo:

“O cravo ficou doente/ A rosa foi visitar/ O cravo teve um desmaio/ A rosa pôs-se a chorar”.

A história caipira de Romeu e Julieta estava contada e plantada na imaginação das crianças brasileiras e, portanto, caipiracicabanas. Que, mesmo na hora da alegria, como o Carnaval, aprendiam sobre tristeza e melancolia, até entre flores, no jardim e no coração da própria jardineira. Alguém pergunta:

“Ó, jardineira, por que estás tão triste: O que foi que te aconteceu?”

E ela responde:

“Foi a camélia que caiu do galho, que deu dois suspiros e, depois, morreu”.

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