A alma caipira, segundo Cornélio

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

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Nascido em Tietê, Cornélio Pires (1884-1948) conseguiu, ao mesmo tempo, conhecer a alma paulistana do início do século XX, quando morou em São Paulo, e a alma caipira, em sua vivência nas cidades interioranas, ditas também caipiras, como Botucatu e Piracicaba. Em nossa doce terra, Cornélio conseguiu congregar grupos “caipiracicabanos” para formar sua trupe artística. Ele foi, sem mais discussões, o grande pioneiro do folclore, da primeira gravação de uma música de Moda de Viola e da literatura regional paulistas.

Sem metodologia ou qualquer pretensão acadêmica, Cornélio Pires, com sua vivência junto ao caipira de São Paulo, acabou criando uma teoria própria sobre ele. Tentou descrevê-lo, “tal como é”, reagindo ao pessimismo de “certos escritores”, conforme escreveu, que apresentam o caipira como “o camponês brasileiro coberto do ridículo, inútil, vadio, ladrão, bêbado, idiota e `nhampã´!”

Como que repetindo Euclydes da Cunha, Cornélio Pires qualifica o caipira: “é um obscuro e um forte”. E parece compor um hino ao narrar-lhe a saga: “Ei-lo tangendo suas `tropas´ cargueiras, empoeiradas ou cobertas de lama, pelos caminhos tortuosos e esburacados, furando matas virgens, galgando montanhas ásperas, vadeando rios revoltos e pestíferos, afrontando pantanais e `atoledos´, atravessando campos e campos, vencendo dezenas de léguas a pé ou arcado e molengão sobre o burro manteúdo, ao monótono ‘belém-belém´do sino pendurado ao pescoço da madrinha ruana!”

Esse caipira – assim o enxerga Cornélio Pires – é nascido “fora das cidades, criados em plena natureza” e, por isso, se tornam “tímidos e desconfiados ao entrar em contato com os habitantes da cidade”. No entanto, são expansivos, alegres, folgazões e francos quando “em seu próprio meio”, onde, “revelando rara inteligência”, são “mais argutos, mais finos que os camponeses estrangeiros”, referindo-se aos colonos imigrantes.

E completa: “Dócil e amoroso é todo camponês; sincero e afetivo é o caipira.”

Classificação caipira

A partir de suas observações pessoais e vivência, Cornélio Pires “classificou” quatro tipos de caipiras: o branco, o caboclo, o preto e o mulato.

CAIPIRA BRANCO – Fosse hoje, Cornélio Pires seria qualificado como “politicamente incorreto” ou preconceituoso. São textuais as suas observações sobre o caipira branco: “quer dizer de melhor estirpe. Meia mescla, descendente de estrangeiros brancos, gente que possa destrinçar a genealogia da família até o trisavô, confirmando pelo procedimento o nome e a boa fama dos seus genitores e progenitores”.

Esses “caipiras brancos” descendem dos primeiros povoadores e de fidalgos ou “nobres decaídos de suas pompas”. Cornélio Pires descreve-os: “por mais pobres que sejam, são sempre proprietários e, com seus cobrinhos e suas terra, podem andar remendados mas andam limpos. Usam chinelos de liga, sapatões ou botinas de elástico, são altos e não têm pés muito grandes. As barbas são abundantes e os lóbulos das orelhas, gordos e destacados das faces. Não dispensam o paletó, não usam colete, mas não passam sem um lenço amarrado ao pescoço, chapéu de pano, calça de riscado e uma boa cinta de couro curtido”.

As “caipiras brancas”, por sua vez, “são mulheres asseadas e amorosas, fugindo às cores berrantes tão apreciadas pelos caipiras caboclos. Excessivamente pudicas, suas filhas, aos sete para oito anos, já usam saias compridas”. Os penteados prediletos delas são: “pericote na nuca ou no alto da cabeça; a trança longa e cheia ou duas tranças pendentes, usando, também, quando pouco cabeludas, trancinhas em rondilha”.

Os “caipiras brancos” são, para o escritor, “os mais hospitaleiros dos homens”.

CAIPIRA CABOCLO – Seriam os descendentes diretos dos bugres, catequisados pelos primeiros povoadores do sertão. Enquanto o “caipira branco” dizia pertencer a uma família – Amaral, Arruda Campos, Botelho e outras – o “caipira caboclo” referia-se a si mesmo: “eu sou da raça de tal gente…” Fortes e magruços, Cornélio Pires diz que não ficavam carecas e nem sofriam do coração ou conheciam a tuberculose.

Barba rala, fios espetados aqui e ali, pele bronzeada, “cor de cuia ou de cobre”. As famílias de “caipiras brancos” raramente aceitavam casamentos com “caipiras caboclos”. O prestígio da “caboclada” não era dos melhores: “inteligentes e preguiçosos, velhacos, barganhadores como os ciganos, desleixados, sujos e esmulambados, mas valentes, brigadores e ladrões de cavalos…”

E o escritor faz o resumo de suas vidas: “caçar, pescar, dormir, fumar, beber pinga e tocar viola, enquanto a mulher, guedelhuda e imunda, vai pelos vizinhos, pidonha e descarada, fala dos bons trabalhadores o feijão, o toicinho, café, a farinha”. E conclui, lembrando ser esse caboclo a figura do “Jeca Tatu”, criada por Monteiro Lobato: “Além de sujo é roto. Mas, graças a Deus, esse tipo vai desaparecer…”

CAIPIRA PRETO – Os descendentes dos africanos. Segundo Cornélio: “os bons brasileiros vítimas ainda das últimas influências da escravidão. Almas carinhosas e pacientes, generosas e humildes, os chamados ‘negros velhos`”. E lembra-se deles, “conversando ao pé do fogo, sentados numa pedra, no terreiro, na soleira de uma porta, aquecendo-se ao sol, pobres, depois de terem, com o seu suor, inundado as fazendas de patrícios seus, enchendo-os de dinheiro”.

Surgira, porém, “o novo caipira preto” que, na descrição corneliana, vive numa “casa quase sempre limpa, coberta de sapé, mas cercada de lavoura, com sua plantação de cana, um pouco de café e cereais. Tem um punhado de santos no terreiro, em mastros, São João, Santo Antônio, São Benedito. É cavalheiresco e gentil, batuqueiro, sambador e `bate´ dez léguas a pé para cantar um desafio num fandango ou `chacuaiá´ o corpo num baile da roça”.

CAIPIRA MULATO – Que Cornélio diz ser “oriundo do cruzamento de africanos ou brasileiros pretos com portugueses, e brasileiros brancos, e raramente com o caboclo”. Este é, para o escritor, “o mais vigoroso, altivo, o mais independente e o mais patriota dos brasileiros”. Excessivamente cortês, galanteador para com as senhoras, jamais se humilha diante do patrão. Apreciador de sambas e bailes, não se mistura com o “caboclo preto”.

Nas primeiras décadas do século XX, Cornélio Pires insistia no surgimento, em São Paulo, de “um novo tipo de caipira mulato, simpático, robusto e talentoso, destacando-se nos grandes centros, após breves estudos: o mestiço do italiano com a mulata ou do preto tão estimado por algumas italianas”.

Literatura caipira

As obras de Cornélio Pires, um dos ícones da chamada literatura caipira, têm sido recuperadas por estudiosos e editoras brasileiras. São parte de um tesouro linguístico e folclórico de uma cultura que, entre paulistas e mineiros, começa a ser valorizada. Jornais, revistas, livros, teses acadêmicas abrem espaços e cuidados para um estilo de vida, o caipira, que continua vivo em muitas das pequenas cidades interioranas, e nos subúrbios de cidades médias, conhecidos como “rurbanos”, comunhão do rural e do urbano. A história de Cornélio Pires está íntima e geneticamente ligada a Piracicaba Cornélio Pires foi um mestre – em prosa e verso e também através da música – em recolher a simplicidade das conversas caipiras, as tais patacoadas, misto de anedotas, tiradas maliciosas, simplicidades e astúcias, contos e “causos”. Poucos conhecidas, no entanto, são algumas de suas poesias, tidas, hoje, como documentos imprescindíveis para se conhecer essa “alma caipira”. Aliás, o primeiro livro de Cornélio Pires intitulou-se exatamente “Musa Caipira”, dedicado a outro mestre do folclore brasileiro, o também caipiracicabanocaipivariano, Amadeu Amaral.

As espertezas de Joaquim Bentinho, personagem de Cornélio, que caracteriza o caipira típico, superam as tolices e malandragens com que o personagem de Monteiro Lobato, o Jeca Tatu, marcou, por tanto tempo, a imagem do caipira paulista. Mas não só Joaquim Bentinho. Em todos os seus escritos, como que em retalhos, Cornélio Pires registrou essa alma caipira, tão rica em sua simplicidade que é universal.

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