Amor em feitio de oração

piracicaba-que-amamos-tanto.-2jpg

*Artigo e fotos retirados do livro “Piracicaba que amamos tanto”, de Cecílio Elias Netto. Essência do livro, no presente texto, o autor fala do seu grande amor por Piracicaba e da importância de cada geração conhecer a história de sua cidade para, então, poder amá-la.

 

“Quero ser como o riacho Itapeva, que nasce e morre em Piracicaba.” (Jacob Diehl Neto)

Ah! como a amo. Apenas Deus avalia o quanto e o tanto. Não há quando, pois é sempre. E os porquês se revelam a todos os sentidos. Amei-a desde o meu início, amo-a agora ainda mais, em minhas cerimônias de adeus. Quero ser o Sol, para aquentar-lhe o corpo. E a Lua, para abrigá-la com luz pálida enquanto dorme. Quero ser o vento, acariciando-a. E a chuva, fertilizando-a. Descobri ser incapaz de viver sem ela.

Mas, também, que vivi para ela. E com ela. E por ela. Amo Piracicaba com alma, coração e vísceras. Receio, quase sempre, seja algo doentio, amor sem limites, sem medidas, até mesmo sem racionalidade. Amo-a apenas por amá-la, seduzido e fascinado desde, acho, quando abri os olhos e a vi. Tão complexo e totalizante é esse amor que a transformei em mulher de mil fascínios: mãe, amante, namorada, santa intocável, vestal, rainha, deusa. Minha terra amada foi e é o mais pleno e eterno feminino de minha vida.

Cativando-me, ela, Piracicaba, me fez homem. E, a partir dela, vi, senti, conheci o mundo e a vida.

Meu pai – em sua poética alma árabe e como se fosse a Sheerazade de seus ancestrais – contava-me que, logo após meu nascimento, ele correu à beira do rio e, num lugarzinho, enterrou-me o umbigo. Fui, pois, lavado pelas águas batismais do rio Piracicaba, meu Ganghes, meu Nilo. Não sei se isso realmente aconteceu – se, apenas, mais uma das mil e uma histórias piracicabanas contadas por meu pai. Mas acreditei e fiz, do rio de minha terra, um sacrário de orações. Imitei, assim, todos os que vieram antes de mim, amantes insaciáveis, devorados por delírios que nos levaram a reconhecer, em Piracicaba, o Éden, o reencontrado Paraíso Perdido

Minha terra totalizou-me como ser humano. Todos os sons que me seduziram, conheci-os aqui, daqui. E os sabores, que me levaram a, em todos os alimentos, sentir um poucochinho do caldo da cana. E a paisagem – os pedacinhos de céu, a vegetação, os horizontes – na qual vislumbrei o que de mais belo poderia haver na Criação. O perfume da terra molhada de chuva, das flores, perfume de mulher e de vida, aspirei-os aqui, inspiraram-me daqui.

Nunca admiti conhecê-la pouco ou limitadamente. Quis e consegui – como o amante diante da mulher amada – conhecer cada pedacinho de seu corpo, de sua história, de suas virtudes e belezas. Ao apaixonado – não nos esqueçamos disso – “até o feio bonito lhe parece”. Feiuras de Piracicaba – se e quando as teve – tornaram-se-me charmosas ao coração encantado.

Amei-a e amo-a, portanto, porque a conheci, por conhecê-la. Parece-me ter nascido com ela. Ou que, dela, nasci. Ou que a fiz nascer de mim. Na verdade, pois, há um parto nesse amor desvairado. Com deslumbramentos e alegrias, com ansiedades e dores. O que dói nela dói em mim. E o que a alegra, alegra-me também. Pouco me importa se não me entenderem, mas, para mim, Piracicaba e eu somos uma só carne, na alegria e na tristeza, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença. Nem a morte haverá de separar-me dela. Pois os mistérios de minha terra eu os tornei mistérios de mim.

Como o homem enamorado que se lembra do primeiro beijo, da primeira noite, de cada emoção – guardo, comigo e em minha memória, lembranças do meu engatinhar, dos meus primeiros balbucios, do deslumbramento de cada revelação no chão de minha terra. Vejo-me, ainda agora, aos dois anos de idade, sendo levado, por meu pai, a nadar nas águas do rio. Vejo-me saltando do trampolim para, com segurança, cair nos braços paternos que me aguardavam como um porto seguro. Vejo-me roubando mangas nos quintais. E correndo – pés descalços, peito nu – pelas ruas de minha terra, serenas, generosas, acolhedoras. Vejo-me, ao lado de Nhô Lica – o maior de nossos sonhadores – catando pedras às margens do rio. Para mim, eram apenas pedras.

Com Nhô Lica, aprendi que pedras de minha terra são, na verdade, diamantes deslumbrantes.

Em Piracicaba, com Piracicaba, por Piracicaba, aprendi a sonhar sonhos bons. Minha alma encheu-se de maravilhamentos ao ouvir meu pai, Mário Neme, Thales de Andrade, Leandro Guerrini, João Chiarini – tantos e tantos outros, que nos visitavam em nossa casa – contando maravilhas de nossa terra, a saga e a epopeia, os segredos e os mistérios. Confesso, ainda hoje, não saber o que é lenda, o que é realidade. Tudo, porém, se transformou em mito, fantasmas que se tornaram heróis, heróis que viveram generosamente sua humanidade.

Nunca consegui deixá-la. Longe dela, sinto-me no exílio. Mesmo querendo cantar, nem sequer uma estrofe consigo compor. O cordão umbilical não se rompe. Newton de Mello sentiu-o antes de mim: “Ninguém compreende a grande dor que sente o filho ausente a suspirar por ti”. É real, é verdadeiro, misteriosamente verdadeiro. No entanto, há, nessa história de amor, uma outra face, para mim ainda mais reveladora. E isso que leva a cantar não a saudade, mas a alegria: “Ninguém compreende o grande amor que sente a nossa gente a suspirar por ti…”

Sei estar, agora, em minhas cerimônias de adeus. Sei ser inevitável ir-me, pois já passei intensa e longamente pelo tempo, vendo surgir o horizonte do final da caminhada. Por mim, eu não iria. Como apartar-me de minha terra se, nela, já conheci infernos, purgatórios, paraísos? O amor faz milagres.

E, por amor, encontrei uma maneira de ficar, mesmo indo. Pedirei a meus filhos, netos e amigos que usem de minhas cinzas conforme a vontade do coração. Por amor a minha terra, quero tornar-me imortal diante dela, para ela.

Então, que minhas cinzas sejam divididas em pequeninos saquinhos, contendo alguns poucos grãos de poeira, essa poeira de estrelas que, na verdade, cada homem é. Então, quero que um pouquinho de cada fique com os que amo, para eu continuar com eles. E outros poucochinhos peço que se espalhem, parcimoniosamente, em árvores e plantas do meu jardim, em árvores e plantas de minha terra, em todos os pontos cardeais.

Quero ser adubo de minha terra. E, então, renascer e ressuscitar em cada flor que brotar em cada primavera, em cada plantinha que surgir. Quero tornar a morrer quando o estio entristecer e depauperar o rio. E renascer com ele, quando as águas me banharem aos pés da árvore de que minhas cinzas serão parte. Se me atenderem o desejo e a súplica, mesmo indo, ficarei.

Mergulhei no mistério das lembranças e da memória desta nossa Piracicaba indecifrável. Escrever este livro foi, para mim, como dedilhar – lenta e devocionalmente – as contas de um rosário. Cada página, uma oração; cada foto ou postal, uma prece. E, nelas, o encontro de mistérios guardados pelo tempo, ocultos no limbo criador da história da terra abençoada. Foram encontros – como na recitação do rosário – com mistérios gozosos (da alegria), com os mistérios dolorosos (da dor), com os mistérios gloriosos (da conquista e da exaltação) e os mistérios luminosos (da cultura, da inteligência, da arte, do amor).

Compartilho-os com o leitor, para que, juntos, possamos contemplar e entender as maravilhas da terra piracicabana, fertilizadas pelo amor de nossos ancestrais. E para que as mais jovens gerações despertem para a sabedoria agostiniana: “Ninguém ama aquilo que não conhece”.

 

“Piracicaba que amamos tanto” é o primeiro volume de três livros escritos pelo ‘caipiracicabano’ Cecílio Elias Netto em homenagem aos 250 anos da cidade (que serão completados em 1º de agosto de 2017).

A obra, que conta com o apoio cultural das empresas Caterpillar, Cosan e Raízen, retrata – em fatos e fotos – a magia e os encantos de Piracicaba, com registros a partir do século 19 até os dias atuais, com o autor narrando, de forma simples, mas ao mesmo tempo opulenta; com linguagem rebuscada, porém espontânea, tudo o que o cidadão piracicabano sente, vê e ouve sobre sua terra, natal ou adotada.

 

Deixe uma resposta