Frutos da Cerejeira

Quem passou pela vida em branca nuvem

E em plácido repouso adormeceu (…)

Só passou pela vida e não viveu.

(Francisco Otaviano)

          

Cerejeiras

Nasci em 1940. No auge da Segunda Guerra Mundial. De tanto ouvir falar de violências, de terrores, tenho, até hoje, a impressão de sentir cheiro de pólvora, de ouvir estrondos, de ver fumaça no ar. Mais do que impressão, porém, ainda vivo aquela certeza infantil de medo do fim do mundo. Pois, era medo de tudo – da vida, da guerra, do final da história humana – o que martirizava os adultos. Todos os dias. E, também, as noites, quando tentavam ouvir notícias, sintonizando imensos aparelhos de rádio movidos a válvulas.

Meus pais tinham um pequeno restaurante, o Café Imperial, quase à frente da então chamada Praça da Matriz. Morávamos no andar superior. E, sem nada entender, eu me punha à janela – ou espiava pelo portão do nosso quintal – aguardando a anunciada bomba atômica que cairia sobre Nagazaki, logo após a devastação de Hiroshima. E, então, às vésperas do anunciado terror sobre Nagazaki – que ocorreu em 9 de agosto de 1945 – dei uma volta no quarteirão e não me conformei com o que vi: havia filas de casais, de rapazes, de moças, comprando ingressos para assistir a um filme no Cine Broadway. Foi quando o medo, o terror da criança de apenas cinco anos, transformaram-se em perplexidade, talvez em indignação: como assistir a um filme se o mundo ia acabar? Nagazaki, milhares e milhares de japoneses – crianças, mulheres, idosos – todos inocentes diante daquela malfadada guerra, desapareceram. Dizimados. Aquelas bombas foram anunciadas como vésperas de uma falsa paz, ou de uma paz surgida da tragédia, da miséria humana, do ventre dos infernos.

Recorri, recordo-me bem, aos adultos do quarteirão. Mas eles, também, estavam perplexos, assustados. Não sabiam o que dizer, como se um senso oculto de humanidade se lhes tivesse brotado dos corações endurecidos pela guerra. Algum tempo depois, meu pai – com seus belos olhos azuis, que se entrefechavam de tristeza – fez questão de mostrar-me, em jornais e revistas, o holocausto também em Hiroshima e Nagazaki. Tinha havido o massacre das populações japonesas. Foi, penso eu, como ele estivesse preparando-me para a vida, onde eu haveria de encontrar maravilhas e encantos, mas ao lado de horrores e de amarguras.

Nunca mais me esqueci daquelas fotos chocantes. E, a partir dali, fui tomado por uma imensa, estranha e marcante simpatia pelo Japão e pelo povo japonês. Garotinho, pensei tivesse, o Japão, desaparecido. E seu povo, varrido da Terra. Que se haviam tornado, feita de lágrimas, apenas uma página da História. O menino ainda não sabia ser, aquele povo, parte fundamental da história humana. E que, portanto, haveria de ressuscitar com força renovada, com espiritualidade contagiante, com orgulho de seu grande destino. O menino – mal conseguindo distinguir rostos – encantou-se com os que tinham “olhos puxados”, não sabendo se sobreviventes, se heróis, vítimas ou seres de um outro mundo. E, pouco tempo depois, passou a tê-los como amigos.

Quando convidado a escrever este livro – convite que muito me honra – pensei em fazê-lo num relato quase jornalístico. Ainda outra vez, lá me vi, eu, com os sintomas da gravidez literária: inquietação, enjoo, incertezas, dúvidas. Estava desafiado a escrever a narrativa do primeiro centenário da imigração japonesa em Piracicaba. Inquietava-me esse número 100, feito de magias, de respeito a uma história de sofrimentos, de conquistas, de integração, de amálgama de culturas. A pouco e pouco, este autor foi tomado por lembranças, recordações, reminiscências e – de maneira doce e suave – também de saudade. Não poderia ser, pois, um relato apenas objetivo, frio, matemático de uma notícia jornalística: aqueles gélidos o quê, quem, quando, onde, como, por que. Teria que haver, também, o subjetivo, o íntimo, o pessoal – e isso é mais do que notícia.

O livro teria, como escolha do autor, que ser escrito com o máximo rigor intelectual. Mas com o coração, com a alma de quem – destes 100 anos da história japonesa em Piracicaba – tem, de vida, quase que 80 deles. É-me permitido, pois, dizer, orgulhosamente, que coexisti quase que centenariamente com essa alma nipo-piracicabana. Que possam – tais recordações pessoais – contribuir, mesmo como simples testemunho, para a importante celebração. De toda a nossa gente.

Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Centenário da Migração Japonesa em Piracicaba”, de Cecílio Elias Netto, em co-autoria com Ronaldo Victoria e Arnaldo e Arnaldo Branco Filho. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.

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