A fúria e a tristeza das águas
A alma piracicabana – e que ninguém duvide ou tente racionalizar esse mistério – exulta ou entristece segundo o diapasão das águas do rio. Somos dependentes delas, como se nos ditassem o ritmo da própria vida. Quando o rio corre sereno, Piracicaba serena-se. À estiagem, ao ver pedras sedentas e aves desoladas, a cidade entristece-se.
Na época das cheias, da piracema – quando os peixes se reproduzem como no milagre evangélico – Piracicaba esbanja alegria. No entanto, ao furor das águas incontroláveis, nas enchentes assustadoras, todos nos assustamos como que diante da cólera dos céus.
Muitas enchentes alegraram ou atemorizaram a cidade. A mais assustadora foi a de 1929. E – como que contrariando os temores científicos em relação ao clima, ao desprezo humano pela natureza – a maior de todas as secas no Rio Piracicaba foi a de 1949 (foto cedida por Luiz Antônio Fagundes). Como numa advertência profética, o rio praticamente secou. E o Salto desnudou-se. Um fenômeno doloroso, um antecipado pedido de socorro do rio. Que, no entanto, ninguém ouviu.
“Não joga água fora. Apenas, chora”.
Tonico e Tinoco quase entenderam. Quase. Mas conseguiram sentir. Caipiras, tiveram a sensibilidade de ouvir o que não foi falado. E de ver o que não foi revelado. O rio – nosso rio, nossa vida – envia mensagens a cada dia, a cada instante. Ele, o rio, é fonte de nossa sabedoria, alimento da alma caipiracicabana. Senti-lo é preciso. Entendê-lo não é preciso.
O rio Piracicaba – ele, sujeito, personalidade, entidade viva – não é de Piracicaba. Ele é o rio Piracicaba. Piracicaba, a cidade, esta, sim, é dele. Tonico e Tinoco quase entenderam, ao cantar a música composta por Tião Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos, que: “O rio de Piracicaba vai jogar água pra fora. Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora”.
Quase verdade. Mas, ao contrário. Nós, piracicabanos – filhos do rio – é que choramos, quando o rio chora. E ele chora. De quando em quando, ciclicamente. Nenhuma ciência humana explica, nenhum cientista deve arriscar-se a alguma conclusão. O rio decide. O rio é dono de si mesmo. O Piracicaba – conforme lhe sugere o próprio coração – faz-se exuberante, todo orgulhoso de si mesmo, inundando coisas e encantando humanos. E – quando lhe dói o coração – o rio Piracicaba exaure-se de amor, de saudade, definhando, desfalecendo, morrendo. São dias, então, de silêncio e de reflexão. Apenas a soberba da ciência tenta explicar. E não consegue.
Em 1949 – quando não havia problemas de ozônio, de poluição – com pouca água, o rio chorou. Não jogou água fora. Apenas chorou. E secou. A noiva morena desapareceu. Algo de trágico parecia ter acontecido naqueles 1949. A história conta que houve, apenas, o início de uma nova ordem política, outro republicanismo, desordens de recomeço. Chorando e secando, o rio Piracicaba tentou avisar. E avisou. Agora, em 2014, retoma o seu esvaziamento sacrificial. E ninguém tenta entender. Na realidade, o rio Piracicaba morre e renasce por nós. Apenas isso.