Gênesis (2 – final)

Diante do que poderia ser o novo Éden, Deus quis saber se aqueles novos humanos tinham, também, dado nomes a coisas, lugares, objetos. E perguntou como nomearam aquele suave e aconchegante novo jardim. O índio respondeu: “pirá cycaba”. Deus sorriu, feliz pelo índio ter entendido que ali era uma corredeira de peixes, um lugar onde peixes paravam: pirá, peixe; cycaba, colheita, pesca. Um outro, porém, contestou, referindo-se ao Salto: “Piracicaba vem de pihá-ci-quâ-bo (de degrau em degrau, aos golpes)”. De pihá (degrau, escada), ci, partícula distributiva, quâ (golpe) e bo (breve), para exprimir o modo de estar. Pronunciado Pihá-ci’Ca-bo). Deus sorriu ainda mais e abençoou: “Que assim seja: Piracicaba, lugar onde o peixe para, colhedeira de peixes”.

Deus renovou suas esperanças e – pensando no Tigre e no Eufrates – viu, naquele solo, o possível surgimento de uma nova e pequena Mesopotâmia, região banhada por rios e riachos. O índio, sem saber do Éden antigo, contou para Deus aquilo tudo de paradisíaco que já conhecia: um outro rio belíssimo, maior, ao qual cada grupo indígena dava um nome: Anhemby, rio dos nambus; ou Inhembi, rio que corre para baixo; ou Tietê, rio dos canários, rio fundo, rio verdadeiro. Deus aprovou: “Que seja Tietê”.

Aqui-nasce-rio-Piracicaba_Rubens-Chiri

(foto: Rubens Chiri)

E, naquela nova Mesopotâmia, os índios contaram ao Criador de lugares já descobertos, nomeados e preservados: Capivary, rio das capivaras; Tupi, o progenitor, que dava nome a diversas tribos; Caiubi, lugar das folhas azuis; Itu, a cachoeira; Ipeúna, onde havia ipês pretos; Ibituruna (Ibitiruna), onde as nuvens eram negras por se confundirem com a montanha escura; Sumaré, lugar de orquídeas; Anhumas, lugar de muitas aves; Corumbataí, o rio povoado de peixes corimbatás; Mombuca, onde se aprende a trabalhar pedras; Mumbuca, lugar de muitas abelhas.

Deus percebeu aquela nova humanidade já familiarizada com o possível outro Paraíso. E perguntou aos habitantes daquele possível novo mundo. “E vocês, como se chamam a si mesmos?” O mais audacioso e valente respondeu: “Eu, paiaguá, fazedor de canoas, canoeiro, defensor deste lugar”.

E, mais tímido, um outro se identificou: “Eu, carijó, meio branco, meio preto.” Mais outro se apresentou: “Eu, caiapó, que trago fogo na mão, incendiário.” (Caiá = queimada; pó = dedo, mão)

 O coração de Deus doeu. Toda a natureza lá estava, esplêndida, generosa. E aqueles homens inocentes, mas com tendências já temerárias… Será que tudo iria repetir-se novamente? Deu de ombros e apenas recomendou: “Aprendam a viver no Paraíso. Mas cuidado com a serpente”.

Povo guerreiro e temido

A nação paiaguá foi formada por um povo guerreiro e temido. Originários das margens do rio Jaguary, estenderam-se a Mato Grosso, Goiás, Paraguai. Eles defenderam, com todas as forças, a invasão de suas terras pelo homem branco, impedindo-o de navegar por seus rios. Massacraram homens brancos em expedições de 1725 e 1730. Na primeira, dos 300 monçoeiros brancos, sobraram apenas “dous brancos e três pretos”. Os paiaguá chegaram a formar um exército de 800 índios em suas embarcações. Foram numerosos em Piracicaba. Formaram um cinturão de defesa para proteger suas terras que iam da Barra do Corumbataí, alcançando a corredeira do Gabrielzinho, passando pelas Ondas, Ondinhas, Paredãozinho e Ilha Mirim. Estes colocavam-se em linha com a Pedra Branca, Ilha da Sepultura, Guaçu, Ilha das Flechas e Paredão do Garcia. Mas acabaram trucidados”.

Canto do Paiaguá

No princípio, era o rio. E, no vazio, árvores, matas, e flores e cores.

Profundo, o silêncio no espaço imenso, fecundo, denso.

Vozes cantantes, únicas da vida abundante.

Na terra, animaizinhos, aves nos ninhos, voantes, cantantes, onças pintadas, gazelas, veados galhados, azáleas e borboletas: criação em harmonia. Epifania.

No princípio, era o rio. Murmúrio misterioso.

Querendo mais consolar e ser consolado, amar e ser amado.

Murmúrio choroso chegando-me aos ouvidos quando, à toa, eu tecia minha canoa. Eu, paiaguá, solitário, entendi ser o pranto – no silêncio do sacrário – um canto da criação. Transformação.

Deslumbrei-me com a doçura das águas límpidas, com a fartura dos peixes. Encontro fascinante: o rio soberano e eu ali, índio, primeiro humano.

Era o Éden que ressurgia, promessa de beleza e alegria.

Paiaguá abençoado, encontrei o sagrado. Redescoberta de promessa a festa.

O divino voltando, mostrando a superação da expulsão.

Renascimento: águas de um novo batismo. O paraíso perdido estava apenas escondido.

Encantado, descobri o lugar onde o peixe para. Dourados, lambaris, jaús, piaparas.

Em minha língua, rendi graças aos céus, tirei do mistério o véu.

Sem medo, revelo segredo: lugar onde o peixe para – Piracicaba

[Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Piracicaba, um rio de passou em nossa vida”, de Cecílio Elias Netto. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.]

Deixe uma resposta