Gênesis

genesis

DANÇA TAPUIA: Albert Eckhout, 1641

Deus criara, há milhões de anos, o céu e a terra, e todos os seres que a habitaram. Já separara as trevas da luz. Dividiu as águas e deu o nome de Terra à porção seca. E, às águas reunidas, chamou-as de Mares. Iluminou os céus, com luzeiros indicadores do dia e da noite. Ordenou, à Terra, a produção de ervas, de sementes, de árvores com frutos para alimentar os seres vivos. Criou peixes, animais, aves. Preparou paciencioso um lugar paradisíaco que acolhesse aquela que seria, em Seu entender, a mais bela de sua obra: o Homem.

Era, o Éden, um lugar. Nele, Deus criou o Paraíso, um “Jardim das Delícias”. Os judeus chamaram-no de “gan-eden”, o próprio jardim, palavra da qual se originaram, em muitas línguas, as versões de jardim, de prazer, de delícias: garden, giardino, jardin, jardim, gardinus, garth, gardeno e muito mais. Nele, o homem conheceria a felicidade plena.

Como se sabe, não deu certo. Para aborrecimento de Deus, o homem desobedeceu, perdendo as doçuras do divino privilégio, sendo destinado a ir em busca de si mesmo, a construir a sua nova morada, “ganhando o pão com o suor do rosto”. Por milhões de anos, essa história persistiu, pois Deus, em sua santa teimosia, não abriu mão de manter o deslumbramento de sua criação.

Na realidade, tudo estava feito. Faltava, apenas, o novo homem e um novo lugar. Distraidamente, Deus, então, espiou um pedacinho de terra, com matas, com rios, com aves, com animais, com índios e se entusiasmou: por que não tentar, novamente, ali? Era um gan-eden, por que não transformá-lo em Éden? Animais já tinham nomes: onça, macaco, capivara, porco-do-mato, quase todos dados por Adão. As aves, também: arara, periquito, tucano, papagaio, andorinha, bem-te-vi, beija-flor. E os peixes: jaú, dourado, mandi, cascudo.

Numa noite enluarada – os índios acocorados em torno da fogueira – Deus se fez fumaça e participou da reunião. Encantou-se ao vê-los todos nus, sem malícia, inocentes como o tinham sido Eva e Adão. A nudez daquelas criaturas encantou-O, pois revelava a inocência de como tinham sido criados. Logo, sem pecado, não precisavam “esconder suas vergonhas” que, na realidade, não eram vergonha alguma, mas a integridade da natureza humana.

Diante do que poderia ser o novo Éden, Deus quis saber se aqueles novos humanos tinham, também, dado nomes a coisas, lugares, objetos. E perguntou como nomearam aquele suave e aconchegante novo jardim. O índio respondeu: “pirá cycaba”. Deus sorriu, feliz pelo índio ter entendido que ali era uma corredeira de peixes, um lugar onde peixes paravam: pirá, peixe; cycaba, colheita, pesca. Um outro, porém, contestou, referindo-se ao Salto: “Piracicaba vem de pihá-ci-quâ-bo (de degrau em degrau, aos golpes)”. De pihá (degrau, escada), ci, partícula distributiva, quâ (golpe) e bo (breve), para exprimir o modo de estar. Pronunciado Pihá-ci’Ca-bo). Deus sorriu ainda mais e abençoou: “Que assim seja: Piracicaba, lugar onde o peixe para, colhedeira de peixes”.

Deus renovou suas esperanças e – pensando no Tigre e no Eufrates – viu, naquele solo, o possível surgimento de uma nova e pequena Mesopotâmia, região banhada por rios e riachos. O índio, sem saber do Éden antigo, contou para Deus aquilo tudo de paradisíaco que já conhecia: um outro rio belíssimo, maior, ao qual cada grupo indígena dava um nome: Anhemby, rio dos nambus; ou Inhembi, rio que corre para baixo; ou Tietê, rio dos canários, rio fundo, rio verdadeiro. Deus aprovou: “Que seja Tietê”.

E, naquela nova Mesopotâmia, os índios contaram ao Criador de lugares já descobertos, nomeados e preservados: Capivary, rio das capivaras; Tupi, o progenitor, que dava nome a diversas tribos; Caiubi, lugar das folhas azuis; Itu, a cachoeira; Ipeúna, onde havia ipês pretos; Ibituruna (Ibitiruna), onde as nuvens eram negras por se confundirem com a montanha escura; Sumaré, lugar de orquídeas; Anhumas, lugar de muitas aves; Corumbataí, o rio povoado de peixes corimbatás; Mombuca, onde se aprende a trabalhar pedras; Mumbuca, lugar de muitas abelhas.

Deus percebeu aquela nova humanidade já familiarizada com o possível outro Paraíso. E perguntou aos habitantes daquele possível novo mundo. “E vocês, como se chamam a si mesmos?” O mais audacioso e valente respondeu: “Eu, paiaguá, fazedor de canoas, canoeiro, defensor deste lugar”.

E, mais tímido, um outro se identificou: “Eu, carijó, meio branco, meio preto.” Mais outro se apresentou: “Eu, caiapó, que trago fogo na mão, incendiário.” (Caiá = queimada; pó = dedo, mão).

O coração de Deus doeu. Toda a natureza lá estava, esplêndida, generosa. E aqueles homens inocentes, mas com tendências já temerárias… Será que tudo iria repetir-se novamente? Deu de ombros e apenas recomendou: “Aprendam a viver no Paraíso. Mas cuidado com a serpente”.

Canto do paiaguá

No princípio, era o rio. E, no vazio, árvores, matas, e flores e cores.

Profundo, o silêncio no espaço imenso, fecundo, denso.

Vozes cantantes, únicas da vida abundante.

Na terra, animaizinhos, aves nos ninhos, voantes, cantantes, onças pintadas, gazelas, veados galhados, azáleas e borboletas: criação em harmonia. Epifania.

No princípio, era o rio. Murmúrio misterioso.

Querendo mais consolar e ser consolado, amar e ser amado.

Murmúrio choroso chegando-me aos ouvidos quando, à toa, eu tecia minha canoa.

Eu, paiaguá, solitário, entendi ser o pranto – no silêncio do sacrário – um canto da criação. Transformação.

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