Manias Caipiracicabanas

pardal

Foto: Rubens Chiri/ B2

Na Antiguidade, para alguns povos – em especial gregos e romanos – bárbaro era quem ou o que pertencesse a outra civilização, ou quem falasse outra língua que não a deles. Trazendo a nossos tempos, por exemplo, o piracicabano e o carioca seriam bárbaros um para outro. Bastaria, apenas, ver o uso do “erre”: para nós, “porta”; para eles, “porrrta”. Mas, atualmente, a palavra bárbaro tem o significado de cruel, de primitivo, “entre autres choses”.

Nativos e pardais

O caipiracicabano considera-se, a si mesmo, um “nativo”. E aquele, que chega e incomoda, é “pardal”. Ou seja, quem vem ciscar em nosso terreiro. Se não cisca e nem incomoda, passa a ser “nossa gente”. A identificação aconteceu a partir do crescimento da ESALQ e sua acolhida a tantos e tantos alunos de outras plagas.

Moços vinham, “ciscavam”, casavam-se – ou, apenas, namoravam – com nossas moças, levando-as embora.

Pardal” era o “agricolão” que, como se dizia do palhaço do circo, “era ladrão de muié”. Atualmente, basta ser aventureiro para ser “pardal”. Os que chegam e ficam ou se vão com alma caipiracicabana, estes se tornam, alegremente, “gente nossa”. Um exemplo: o grande Vlamir Marques – o “Diabo Louro” do basquetebol – veio, ciscou, casou-se com a nossa linda Cecília e levou-a embora. Mas Piracicaba e ele continuam apaixonados entre si.

De que família você é?

Ao conhecer ou ser apresentado a outra pessoa – que escolheu Piracicaba para viver – o piracicabano costuma fazer uma pergunta considerada incômoda ou, pelo menos, intrigante: “De que família você é?” Isso aborrece, especialmente ao início da relação. (Depois, quando já “caipiracicabanizada”, a pessoa faz a mesma pergunta a quem está chegando).

Trata-se, porém, de equívoco. Pois, ao perguntar, nós estamos querendo familiarizarmo-nos com a pessoa recém-chegada ou recém-apresentada. O “de que família?” faz parte de nossa cultura de aproximação, de acolhida. Se a família do dito-cujo é conhecida, eis, então, que a acolhida é fraternal, calorosa, criando relação amistosa imediata: “Ah! Então você é parente do José, meu grande amigo”. No entanto, se for desconhecido, a relação, ainda que simpática, é mais formal. (Sincera ou hipocritamente. Aliás, não é, a hipocrisia, um dos fundamentos da civilização?).

Como se namorava

Fica-me quase mais claro, hoje, que o namoro – na Piracicaba do passado – mais do que romântico, beirava o trágico. Desfalecia-se por amor. Morria-se de amor. Tantos eram os tabus, as restrições que namorar – em especial aos adolescentes – era uma aventura a cada dia.

Namorava-se às escondidas dos pais. Os apaixonados encontravam-se com pernas e corações trêmulos, temendo ser vistos. As muitas proibições induziam a riscos incríveis. Na maioria das vezes, porém, era uma grande farsa: os enamorados fingiam que os pais não sabiam e estes fingiam não saber. Na realidade, havia medo diante da realidade impossível de ser reprimida: a força da carne, a explosão hormonal, o domínio do sexo. Nesse fingimento todo, havia um espaço como que sagrado, onde os pais não se atreviam a ir e no qual os namorados se abrigavam: o jardim quase sombrio do grupo “Moraes Barros”.

Namorava-se sob a proteção de árvores, do majestoso prédio que criava penumbras propícias a esconderijos. Mas como se namorava?

Havia um ritual, antes da irradiação amorosa dos chamados “Anos Dourados”, dos anos 1950 a meados dos 1960. Os pretendentes olhavam-se “quadrando jardim”. (Sempre o olhar, o olhar, “janela da alma, espelho do mundo…”).

Piscavam-se insinuantemente. Algum garoto leva bilhetinhos do pretendente. E, numa noite qualquer, encontravam-se, temerosos e inquietos. A garota nunca ia só, pois seria um escândalo, se o fizesse. Começavam conversando, trêmulos. Após um mês de encontros, ele tocava um dedinho da mão dela. E era a suprema alegria! Seis meses depois, o primeiro beijo. Na face! E os anjos bailavam ao desejo humano deles. Do beijo na face ao no da boca, era mais rápido. E, depois, que o mais estivesse por conta de Deus. E Deus se deliciava com o erotismo alucinado dos jovens amantes. Ah! Quase me esqueci. Se se descobrisse que a mocinha fora desvirginada, casar-se com ela – como reparação mais do que amor – era obrigatório. Questão de honra.

Piqueniques

 Não havia maior maneira de confraternização do que os piqueniques (pic-nic, em sua versão francesa). Eram passeios ao ar livre nos quais as pessoas levavam alimentos para o desfrute de todos. Os espaços preferidos eram os imensos gramados da ESALQ, então chamada de “Escola Agrícola” e as alamedas do Mirante.

Em minhas doces lembranças, tornaram-se inesquecíveis: minha família ia sempre ao Mirante, levados pelo bonde. Era um verdadeiro garrular de aves assanhadas. O ronco do Salto era melodia aos ouvidos, como que uma saudação do rio. Íamos pelas alamedas – ainda de terra – e minha mãe estendia uma grande toalha no chão onde se colocavam alimentos. Eram tortas, frangos assados, coxinhas, empadas, sucos. Os adultos sentavam-se, conversavam, comiam. Nós, crianças, corríamos por todo aquele paraíso e faltava-nos apenas asas para nos sentirmos anjos. Piqueniques eram a consagração das famílias à Mãe da Natureza.

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PIQUENIQUE NO RIO DAS PEDRAS, 1899, Almeida Junior

Ranchadas

Hábito tipicamente piracicabano, que já teve seu auge e não morreu, nem mesmo quando o rio Piracicaba finge que agoniza. São reuniões, masculinas, em ranchos de pescaria durante os finais de semana. Era na verdade uma oportunidade de se exercer a amizade e a solidariedade, no encontro entre amigos. E, também, de muita boêmia. Uma informação maliciosa: antigamente, os ranchos – durante a semana e à noite – eram seguro abrigo para encontros amorosos, muita viola, muita bebida,

muita … Eles tinham até um código de conduta, com regras detalhando detalhes: quem quebrasse algo tinha que pagar e todos tinham que trabalhar naquele “dolce vita” (ou “dolce notte…”). Até o cantor Roberto Carlos teve rancho na cidade, na sempre generosa Artêmis.

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