O açúcar colonial

Olho, comovo-me 

(Alberto Caeiro)

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(foto: Cícero Correa dos Santos / acervo: Cecílio Elias Netto)

Ai! Nem gosto de me lembrar dessas coisas. Mas, que há de se fazer, quando a realidade fala muito mais alto do que qualquer invenção? Se há beleza é por, também, existir a feiura.

Aliás, discordo dos que dizem ser, a beleza, “ausência do feio”. Nem sempre. Belo e feio, se não convivem entre si, coexistem. A belezura e os encantos daquela povoação tão bonita, tão generosa conviviam com a ‘feiura’ da escravidão. Muito antes da formação do arraial, o homem branco já se instalara nas nossas férteis e atrativas terras.

Quando Pedro Cavalcanti requereu a posse da sesmaria em nossas bandas, o homem negro já estava por aqui. Escravo e sofrendo. Pois o açúcar teve, também, a acidez de vinagre do suor, sangue e lágrimas dos negros. Que, mesmo assim, eram generosos a ponto de o branco confundir paciência e humildade com submissão.

Ou seria conformação diante do que, secularmente, lhes parecia amargo e inamovível destino? Afinal de contas – e as pessoas ainda encarnadas podem consultar em seus livros e, agora, também na internet – foi em 1454, antes da descoberta do Brasil, que o Papa Nicolau V assinou uma bula para favorecer Portugal, seu aliado, nas cruzadas. E, nela, como se fosse o próprio Deus, o Pontífice garantiu, aos portugueses, direitos totalitários na África e terras conquistadas. Por força disso, os negros também “deveriam ser convertidos à fé católica, capturados, conquistados, subjugados ou lançados à escravidão perpétua”.

Como foi possível acontecer essa barbárie? Pois, também em Piracicaba, aconteceu. E, agora – onde estou, e de onde narro estas coisas – sei a maldição das misérias humanas que produziram a escravidão. Está na origem dos homens, como desafio permanente a ser vencido. Escravos da povoação piracicabana viveram os mesmos horrores sem que, no entanto, fossem informados do que, ainda na Antiguidade, o sábio Sêneca tentara ensinar. Para os gregos, escravos chamavam-se “corpos”.

Sêneca advertiu: “Quem pensa ser o homem todo – aquele que ele chama de escravo – erra e não sabe o que diz: a melhor parte do homem – a alma – é livre”.

Do período colonial à maior parte do Império, o negro foi tratado como objeto. E que ninguém se atreva a encontrar culpados, pois é culpa humana, do bicho-homem que se vai polindo a pouco e pouco. E – aos que aí estão, ainda encarnados – esse “pouco e pouco” significa milênios, segundo vocês mesmos, que resolveram limitar o tempo. Quando Martha Watts – a educadora que nos deixou como herança o Colégio Piracicabano – antes ainda da Abolição, contratou Prudente de Moraes para alforriar a escrava Flora Maria, a iniciativa foi, à época, notável. Aconteceu que Miss Watts já conhecia aquele horror. Ela viera do sul dos Estados Unidos, onde a escravidão causara a sanguinolenta guerra civil que dividiria aquele país. Lá, como aí…

Acompanho essa evolução. Olho e me comovo. A antiga “civilização do açúcar” – forjada, fundamentalmente, a partir da escravidão negra – deu lugar a essa riqueza decente oferecida pela ciência e tecnologia. Não há mais escravos, nem mesmo quase existem os chamados “boias frias” – e, em mais de 250 anos de existência, a antiga aldeia de um amargo açúcar colonial é modelo das humanas doçuras extraídas da terra.

 [Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro 250 Anos de Caipiracicabanidade”, de Cecílio Elias Netto, em co-autoria com Arnaldo Branco Filho e Marcelo Fuzeti Elias. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.]

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