O cotidiano dos negros escravos

Um importante testemunho histórico, que julgo necessário resgatar, é o de Maria de Souza Barros, filha primogênita do segundo casamento de Luiz Antônio de Souza Barros e, portanto, neta do Brigadeiro Luiz Antônio. Casada com Antônio Paes de Barros, senador da República, tornou-se nora do primeiro Barão de Piracicaba, com o mesmo nome do marido. Aos 94 anos de idade (nasceu em 1851) publicou suas memórias de infância, que circularam em 1946, pela Editora Brasiliense.

É das memórias da infância o texto reproduzido abaixo, das muitas férias que, quando menina, na segunda metade do século XIX, passou em fazendas de Piracicaba e Campinas, nas vastas propriedades de sua família. Maria de Souza Barros está na galeria das grandes damas paulistas. Uma de suas irmãs foi professora de línguas estrangeiras e piano do Colégio Piracicabano, segundo Maria Celestina Teixeira Mendes.

“…era hora dos trabalhadores voltarem do cafezal, cobertos de poeira vermelha, com os utensílios ao ombro, as mulheres trazendo os filhos pela mão e o feixinho de lenha para preparar a ceia. Todo esse aspecto de uma serena vida familiar constituía flagrante contraste com a rude e trabalhosa existência dos escravos. Estes, desde a madrugada, ao toque do sino, até o anoitecer, com a enxada na mão, iam executando, quase sem descanso, sob o chicote do feitor, os mais árduos trabalhos – vida essa que somente o espírito obtuso e submisso do africano podia suportar sem revolta. E, no entanto, bastava terem bom trato e um senhor humano e justo para que vivessem satisfeitos. O descontentamento e as queixas apareceram com os crioulos, seus filhos, quando começaram a civilizar-se. Mas, apesar do trabalho forçado que não lhe esgotava a robustez excepcional, o africano, amigo da música e da dança, tinha seus dias de regozijo. O batuque era o transporte para sua alma simples.

Nos dias feriados, e algumas vezes nos sábados, vinham eles pedir licença para se divertir um pouco. E assim passavam a noite inteira, dançando e cantando em torno de uma fogueira armada no centro do quadrado, de modo que a música e o vozerio não incomodavam ninguém…

…Com a pequena quantia que alguns dos pretos conseguiam ajuntar, vendendo na vila o produto da gleba que lhes era concedida, preparavam- se para o dia de São João, sempre tão festivo. Compravam para si uma bonita camisa de cor e uma saia de chita de ramagens para a mulher. Obtida a licença de usar o grande carro de boi, transportavam grossos troncos de árvores, com os quais armavam duas belas fogueiras, no terreiro da casa-grande. Ali preparavam a longa mesa do banquete.

O comendador, disposto a larguezas, dava-lhes para esse dia uma novilha, um porco, arroz, certa quantidade de açúcar para a confecção de grandes pratos de doces de abóbora, cidra e batata, além da pinga que, já se vê, era fartamente distribuída.

Sentavam-se a mesa os pretos – adultos e crianças, com exceção de algumas mulheres mais tímidas, que preferiam fica servindo, rodeadas de um bando de crioulinhos, a rir a brincar num contínuo vai vem. O jantar não decorria sem as alegres manifestações de ‘Viva sinhô! Viva sinhá!’ a que a família, postada na varanda agradecia…”

Leia mais em: “Preconceitos: a face triste“, do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

Deixe uma resposta